segunda-feira, 23 de maio de 2022

ENTRE SILÊNCIO E VERBO

 

Entre Silêncio e Verbo

Quase desconfortável
eu preciso escolher
entre silêncio e verbo.

o silêncio —
esse véu pesado
que me protege e me prende,
me deixa inteiro
e invisível.

o verbo —
esse risco.
ao ser dito,
não volta.
ao ser gritado,
marca.
ao ser sussurrado,
se arrisca a ser mal interpretado.

há dias em que sou o silêncio,
por medo.
outros, o verbo,
por urgência.

mas sempre
há esse instante entre os dois,
um limiar
onde sou só
pele e escolha.

e ali,
quase desconfortável,
respiro fundo
e salto:

palavra.

ECOS DO PASSADO

 

Ecos do Passado

ouvem-se passos distantes
no corredor do tempo
vozes que ainda sussurram
entre paredes esquecidas

o passado é um eco
que nunca se cala
uma sombra que dança
nas luzes do presente

às vezes dói ouvir
às vezes acalma
mas sempre lembra
quem somos e de onde viemos

carrego esses ecos
como um livro aberto
onde cada página
fala de luta e de amor

e mesmo que o tempo
tente apagar a voz,
o passado ressoa
na alma que escuta

domingo, 22 de maio de 2022

CIDADE EM LIMIAR

 

Cidade em Limiar

Entre o claro e o escuro
a cidade suspira
num fôlego contido
entre a noite e o dia

as luzes hesitam,
os passos desaceleram
e tudo parece esperar
algo que ainda não veio

é um espaço invisível,
um limiar silencioso
onde o tempo se dobra
e o impossível se faz possível

a cidade em limiar
é ponte e margem,
é caminho e parada,
é sonho que desperta

ali, entre sombras e luz,
encontro pedaços meus
escondidos na espera
prontos para renascer

quinta-feira, 19 de maio de 2022

LABIRINTO SEM MAPA

 

LABIRINTO SEM MAPA

não sei dizer quando começou
talvez numa tarde qualquer
quando a luz do quarto parecia errada
ou quando o silêncio das coisas
ficou mais alto que o meu fôlego

senti um não-sentir
uma vontade vaga
de sumir
mas deixando recados nos espelhos

tudo parecia um gesto inacabado
entre querer e não querer
entre ir e ficar
como se meu corpo vacilasse
numa fronteira invisível

nenhuma palavra era suficientemente funda
nenhuma ausência, suficientemente ruidosa
para explicar esse vácuo que
não cabe em poema

apenas sigo
com esse pressentimento
de estar sempre
numa espécie de labirinto sem mapa
onde até o erro parece familiar.

LUGAR DE VOLTAR

 

LUGAR DE VOLTAR

a dor não latejava
ela pairava
como uma poeira miúda
depois de um desmoronamento

na pausa entre um suspiro e outro
enxerguei as pessoas
como se fossem partes de um mesmo enjoo
passando rápidas
como quem evita perguntas

eu, ali,
num carro quieto
sem rumo
com os olhos encostados no tempo

queria que a cidade soubesse
que eu estava cansado
e que alguém me dissesse
sem pressa,
“vem, aqui é casa.”

mas o semáforo mudou
e a vida seguiu sua marcha automática
eu apenas fiquei
no desejo de recomeço
que ainda não sei como se faz.

domingo, 15 de maio de 2022

O PULSAR DA PROMESSA

 

O Pulsar da Promessa

Um rubro intenso, não de sangue ou fúria, mas da cereja madura, do sol que se derrama no horizonte.

Essa promessa pulsa, quase palpável, na quietude que precede o trovão, no brilho úmido da terra molhada.

Não são palavras emolduradas, nem juramentos ao vento. É a vibração sutil que emana do encontro de olhares, do toque breve que acende a pele.

Um instante... apenas uma fração do tempo, onde as defesas se desfazem, onde o medo se curva à certeza.

A entrega é total, um mergulho sem reservas, no agora que se expande, abolindo passados e futuros.

Nesse núcleo incandescente, onde a promessa se cumpre sem ser dita, onde a entrega floresce sem amarras, existe apenas o ser, vibrando em uníssono com a pulsação do universo.

E a lembrança desse instante, esse rubro na memória, torna-se a bússola silenciosa, guiando os passos em direção a outras entregas vibrantes.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

TAMBÉM VOU SER POETA

 

TAMBÉM VOU SER POETA 

também queria viajar,
ir e ficar
em pasárgada (sei lá).
e, pelo estatuto do poeta,
tenho direito a pagar meia passagem —
e o pagamento será feito em gramas de sonho.

rompendo as ânsias e lá chegando,
tenho direito ainda
a fixar residência
onde bem me aprouver,
desde que haja cachoeiras por perto
e libélulas gritem cantos
como cotovias,
e sabiás saibam seus ninhos nas palmeiras,
e que explodam girassóis
desde o mais tenro início de inverno,
que não poderá ser
nem muito frio
nem muito distante.

não quero que haja reis,
e sim princesas,
e rainhas brotem aos cachos
como pingo-de-ouro,
e se deixem ser amadas
por seus cavaleiros errantes
assim como eu.

e, quando eu voltar às realidades daqui,
quero ser reconhecido
pela minha eloquência embandeirada
e pela alcunha de:
“poeta, o audaz”.