quarta-feira, 24 de maio de 2023

PALAVRA PRESA

 PALAVRA PRESA

 

Esse nó na garganta, apertado e cruel,

Sufoca a voz, a fala, o pensamento.

Um peso imenso, que se faz implacável,

Em silêncio rouba a paz e o contentamento.

 

A palavra presa, em vão tenta escapar,

Mas a angústia a prende, em sua teia escura.

Um turbilhão de emoções, que se amontoam,

E a alma se debate, em sofrimento puro.

 

Lágrimas contidas, um oceano calado,

Que inunda o peito, com sua dor profunda.

A solidão se instala, em seu reino sagrado,

 

E a esperança se esvai, como fumaça efêmera e munda.

Só resta a espera, paciente e sem alívio,

Que esse nó se desfaça, em suave derretimento

terça-feira, 23 de maio de 2023

NOJO

 

Nojo

Eu tenho nojo da fome
que grita no estômago das crianças
e é calada
pela indiferença.

nojo da corrupção
que veste terno
e come o pão
de quem não tem nome.

tenho nojo da desumanidade
que transforma gente
em estatística,
da violência cotidiana
que vira trilha sonora
de quem já nem reage.

tenho nojo —
mas não me calo.
o nojo é o grito
antes da ação,
é o enjoo de um mundo
que precisa nascer de novo.

meu nojo
não é repulsa
à dor do outro.
é repulsa
de viver num sistema
que a produz
e a lucra.

há um tipo de nojo
que desperta:
ele queima por dentro,
até virar verbo,
até virar
luta.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

FRAGMENTOS DE ESPELHO

 

Fragmentos de Espelho

Eu me olho
e não me vejo inteiro
apenas partes —
reflexos partidos
em molduras sem vidro

há um pedaço de mim
no riso que invento
outro
na dor que escondo

o espelho nunca mostra
a alma em voz alta
só fragmentos
como se a verdade
não coubesse de uma vez

sou um quebra-luz
feito de cacos que brilham
mais do que se fossem lisos

e às vezes entendo:
não preciso ser inteiro
pra ser sincero
nem simétrico
pra ser belo

sou feito de estilhaços
mas cada um deles
carrega um céu

sexta-feira, 19 de maio de 2023

SÓLIDA SOLIDÃO

 

SÓLIDA SOLIDÃO

meu quarto inerte me deixa só
e o frio (estúpido) se desprende da
vidraça fechada atrás das cortinas
de cetim amarelo-doentio

em meu peito meus braços me dizem
que já não suportam o vazio
que deixas quando não vejo nem toco
teus lábios

quisera poder sugá-los
por todos os ângulos
em todos os lugares:
em minha cama
no cinema
no drive-in
em qualquer parque onde brotam
as vincas
na rua
na dura realidade do dia-a-dia
até sentir que não
morrerei
na (não nessa) solidão


Revisão alternativa (mesma base, mais crua):

meu quarto é uma caixa de ausência
o frio atravessa a cortina
como se o cetim não bastasse

meus braços, cansados,
me imploram pele
em vez do eco

teus lábios:
onde ficam quando o mundo me pesa?
quisera lambê-los de volta à existência
no escuro,
no riso,
no lugar onde brotam vincas e vontades
na rua
na cama
entre a pipoca e o pânico cotidiano

só assim, talvez,
a solidão parasse
de virar rocha dentro de mim.

O VÔO II

 

O VÔO II

cheguei
sem saber se era certo
sem saber se ainda era hora

meu corpo
um corpo ausente de certezas
andava sozinho por esteiras e corredores
como se obedecesse a outra mente
(ou outro coração)

você não estava —
mas eu reconheci seu cheiro
nas árvores baixas da saída
e na moça do balcão
que me disse “bem-vindo”
com um sorriso parecido com o teu

por um instante
achei que te veria correr
com o cabelo amarrado
e uma mochila torta
dizendo “eu sabia que você vinha”

mas não veio

então esperei mais um pouco
como quem espera o amor
na segunda chamada de um vôo cancelado

e fui embora
sem mala
sem pressa
com o eco de tua voz em meu nome
Viny
só você me chama assim
e isso ainda dói.

terça-feira, 16 de maio de 2023

LÍNGUAS DE PEDRA

 

Línguas de Pedra

A terra respira. Não com pulmões de carne, mas com o lento inchaço de montanhas erguidas sobre milênios.

Sua voz não é som, não é palavra gritada no vento. É o peso da rocha, a ruga no flanco da colina, o granito calado na base do tempo.

A língua da pedra. Gravada em estratos, em fósseis que foram vida, em minerais que guardam a memória de fogos primordiais.

É a textura áspera sob a mão, o frio ancestral que emana do coração da montanha. Cada fissura, cada veia quartzo, uma sílaba esquecida, um verso petrificado.

E o silêncio. Ah, o silêncio da terra! Não o vazio, mas a plenitude que não precisa de som. O vasto deserto sob o sol impiedoso. A floresta densa antes do amanhecer. As cavernas escuras e profundas.

É o silêncio que precede a tempestade, o silêncio que guarda segredos de Eras Glaciais, de mares que secaram, de seres que andaram por aqui e se tornaram pó.

A terra fala em línguas de pedra, com a solidez imemorial que desafia nossa brevidade.

Fala em silêncio, com a quietude profunda que nos convida a ouvir além do barulho.

Basta parar. Sentir o chão sob os pés. Ver a montanha ao longe. Estar no vasto. E a terra, então, começa a contar sua história antiga, em sua própria e silenciosa linguagem.

terça-feira, 9 de maio de 2023

CAMPONESA

 

CAMPONESA

entro em seu delírio
como se buscasse o significado
de seu corpo,
áspero pelas asperezas
que a terra lhe deixa
quando revolve a terra
em busca das tantas
fertilidades.

são tantos os caules
que cultiva,
são folhas,
são tubérculos
e outros frutos
que Gaia nos dá
após alimentá-los
em seus úberes.

entro em seu delírio,
e a memória me remete
aos banhos
no lago,
que nos refresca para o início
do momento que se
faz presente.

e não revelo quem é
nem o que cultiva,
para que tudo dure
até que o passado
se confunda
e se perca nas vontades
do futuro.