quinta-feira, 28 de maio de 2015

O VOO QUE NÃO É VOO

 

 O Voo que Não É Voo

 

A saudade, sorrateira.

Não a que se chora, mas a que se finca.

Um andaime espetado em plena avenida,

nas minhas veias,

nas minhas artérias dilatadas.

Que estranha arquitetura é essa que se constrói dentro de mim?

 

Sua voz, um eco que se recusava a ser calado,

diria: "Volta."

Uma palavra. Um abismo.

Uma ordem que não se ordena.

E a gente obedece. Por que?

 

Sem perceber as implicações.

A intenção do carinho, essa armadilha sutil.

Que muda a gente, sem a gente querer.

Que tece outra trama, outro destino.

E de repente,

eu, o que fugia, o que se esquivava,

percebi-me:

malas na mão,

naquele imenso saguão.

Um lugar de partidas e de chegadas,

mas que para mim, era apenas um limbo.

Aguardando a aeronave.

Que me aproximaria.

De você.

Mas de que forma?

Em qual tempo?

Essa aproximação, não é um ir.

É um deixar-se levar, para onde?

Para o assombro do que virá?

Ou para a perplexidade do que já se foi?

domingo, 24 de maio de 2015

DE QUEM JÁ PASSOU E DEIXOU MARCAS

 

De quem já passou e deixou marcas

Nem tudo vai embora
quando parte.
Há presenças que ficam
na ausência.
Rastros sutis
que o tempo não apaga,
só acomoda.

De quem já passou,
ficou o cheiro em certas horas,
uma música que não toca igual,
o jeito de olhar o mundo
com um pouquinho mais de cuidado.

São marcas,
não feridas.
Sinais de que houve encontro,
de que algo em mim
foi tocado
pra nunca mais ser o mesmo.

E não quero esquecer.
Não preciso arrancar lembranças
pra seguir.
Carrego-as comigo
como quem carrega cicatrizes bonitas —
daquelas que contam histórias
sem precisar doer de novo.

Algumas pessoas partem,
mas antes disso
plantam coisas que nascem devagar
no chão secreto da alma.

E o que floresce ali
nem sempre tem nome,
mas tem raiz.

 

segunda-feira, 11 de maio de 2015

NO DEDO DO VENTO

 

No Dedo do Vento

Abre a noite, e o vento, mão invisível, acaricia a cortina fina. Ela dança, flutua, fantasma branco no batente gasto da janela.

O frio entra, traz a cidade que dorme, um gigante adormecido lá embaixo. Mas o vento não dorme, ele sopra segredos nas coroas das árvores, fala em línguas antigas que só a folha entende.

Cheiro de terra úmida, lembrança de chuva que passou, ou talvez de outra chuva, muito antes, em outro tempo, outra vida. Memórias soltas no ar, carregadas pelo sopro errante.

Lá no alto, as estrelas são pontos frios, ouro velho salpicado no veludo preto. Elas olham, sem ver, sem sentir o murmúrio que tece a noite.

Aqui dentro, a penumbra suave acolhe o silêncio. Guarda as palavras não ditas, as perguntas sem resposta, e um punhado miúdo de esperança, esperando o amanhecer no colo da escuridão.

O ALFABETO ESQUECIDO DO AFETO

  

O Alfabeto Esquecido do Afeto

( e o amor se comunicava em línguas antigas)  


Não era o "eu te amo" ruidoso dos filmes, nem as mensagens rápidas na palma da mão. O amor deles tinha o passo lento dos séculos, a cadência das marés que beijam a areia e recuam, deixando rastros de espuma e mistério.
Comunicavam-se em hieróglifos da alma, desenhados no ar com o contorno dos dedos trêmulos, uma gramática de olhares profundos que falavam mais que a voz. Usavam advérbios de silêncio, conjugavam verbos no tempo dos suspiros contidos.
As palavras, quando vinham, eram como pergaminhos amarelecidos, frases cunhadas em um idioma que o mundo esqueceu. Um "fica" dito com a urgência branda de quem sabe que a permanência é um milagre diário. Um "lembra-te" que não pedia recordação, mas selava pactos além da memória.
Eles liam o amor nos veios da madeira antiga, no pó que dançava nos raios de sol que entravam pela fresta. O amor era uma runa gravada no tempo, incompreendida pelos apressados, mas perfeitamente clara para os que ainda sentiam o eco das línguas antigas, aquelas que o coração jamais permite que se percam de verdade.