sexta-feira, 24 de maio de 2024

A TEIMOSIA DAS SEMENTES

 A Teimosia das Sementes


As sementes ignoram o impossível. 

Encostam-se à terra dura, 

silenciosas, 

e lá ficam, como promessas esquecidas.


O tempo passa, indiferente. 

O sol as observa, sem urgência. 

A chuva as visita, sem certezas. 

Ainda assim, esperam.


Num dia qualquer, 

que não era para ser, 

elas esticam seus dedos invisíveis, 

empurram o peso do mundo e rasgam o chão.


A terra, 

antes uma sentença, 

agora as embala como mãe. 

As sementes venceram, 

não pela força, 

mas pela teimosia.

ORGANIZEI MINHAS CAIXINHAS INTERNAS

 

Organizei minhas caixinhas internas

Demorei.
Mas um dia sentei comigo
e fui abrindo as gavetas da alma,
aquelas que eu fingia que não existiam.

Tinha poeira de antigas promessas,
bilhetes amassados de amores mal passados,
retalhos de silêncios guardados
como se fossem culpa.

Organizei minhas caixinhas internas
com o cuidado de quem mexe em espelhos.
Não joguei tudo fora —
guardei o que ainda pulsa,
despedacei o que já era peso.

Coloquei etiquetas invisíveis:
“não insistir”,
“ainda dói, mas passa”,
“lembrança boa, não abrir todo dia”.

Dobrei saudades com delicadeza,
separei medos por tamanho,
encaixei um futuro pequeno
entre duas esperanças de tamanho médio.

E quando fechei tudo,
não senti alívio —
senti espaço.

Agora há lugar dentro de mim
pra uma nova bagunça,
mas com mais consciência,
mais ternura,
menos pressa.


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Aqui dentro, cabe mais silêncio agora

Depois que mexi nas gavetas,
alguma coisa se alargou em mim.
Não é ausência,
é espaço.
Não é vazio,
é pausa.

Aqui dentro,
cabe mais silêncio agora —
não o silêncio da fuga,
mas o que escuta,
o que acolhe.

Silêncio que conversa com o tempo,
que não pressiona respostas,
que sabe que há dores
que só se curam no escuro.

Aprendi a não preencher tudo.
A não encher as horas de vozes,
os dias de tarefas,
o peito de urgências.

O silêncio agora é mobília:
me serve de abrigo,
de chão firme,
de ponto de respiro
no meio do mundo que grita.

E às vezes,
no meio desse silêncio novo,
escuto um som pequeno
vindo de dentro —
algo que talvez seja alegria
reaprendendo a crescer.


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Me tornei casa para mim

Depois de tanta porta batida,
de tanto teto que ruiu sem aviso,
descobri:
eu podia ser abrigo.

Sem precisar me explicar.
Sem precisar caber no desenho dos outros.
Me tornei casa para mim,
com janelas que só abro quando quero
e luz acesa no quarto da calma.

Não foi fácil —
aprendi a lixar minhas arestas,
a consertar o que ninguém via,
a pintar paredes internas
com as cores que me faltavam por fora.

Há dias em que ainda venta por dentro.
Mas hoje,
sei fechar as cortinas,
acender uma vela,
e esperar passar.

Reinaugurei meu coração
com um tapete de boas-vindas
e uma placa na porta:
“aqui mora quem ficou,
mesmo depois de tudo”.

Me tornei casa para mim.
E isso não me isola —
me prepara.
Pra receber sem perder,
pra amar sem me deixar do lado de fora.


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A chave ficou comigo

Não tranquei por medo.
Fechei por cuidado.
A chave ficou comigo
como quem aprende, enfim,
que estar aberto não é estar exposto.

Por muito tempo deixei portas escancaradas
esperando que alguém entrasse
e me dissesse quem eu era.
Hoje, sei:
quem atravessa sem bater,
às vezes, só vem bagunçar.

A chave ficou comigo.
E não é segredo,
é escolha.
Aprendi a escutar o som dos passos
antes de destrancar.

Algumas visitas, deixo no jardim.
Outras, convido pra sentar
no sofá das histórias que doem menos.

Agora sei trancar sem me fechar,
abrir sem me perder,
ficar sozinho sem me abandonar.

Carrego a chave comigo
como quem carrega um amuleto:
não pra impedir o mundo,
mas pra lembrar que eu posso voltar
quando quiser.

E isso —
essa liberdade de sair e voltar pra mim —
foi o que me salvou.

 

 


AGORA TENHO MENOS LÁGRIMAS

 

Agora tenho menos lágrimas

Não porque a dor passou,
mas porque aprendi a regá-la
com menos alarde.

Agora tenho menos lágrimas —
não por ter vencido,
mas por ter feito as pazes
com o que não sei nomear.

As que restam,
escorrem com mais silêncio,
mais densas,
mais verdadeiras.

Choro menos,
mas sinto mais.
E isso é estranho,
às vezes bonito,
às vezes só… inevitável.

Algumas dores viraram paisagem,
outras, memória organizada em caixas internas.
Já não preciso que tudo transborde
pra saber que é real.

Aprendi a respirar no meio do vendaval,
a sorrir com os olhos embaçados,
a caminhar mesmo com um nó na garganta.

Agora tenho menos lágrimas —
mas cada uma delas
conhece o caminho do meu rosto
como uma prece antiga.

CAMINHOS QUE EU NUNCA PERCORRI

 

Caminhos que eu nunca percorri

Guardo uma ternura estranha
pelos caminhos que eu nunca percorri.
As ruas que não desci,
as janelas que não abri,
as pessoas que não olhei por tempo suficiente.

Há algo de poético no quase.
No que ficou por um fio,
num segundo a menos,
num gesto que hesitou.

Penso às vezes:
e se eu tivesse virado à esquerda?
E se tivesse ficado mais cinco minutos?
E se tivesse dito sim?

Mas logo respiro —
porque há beleza também
nos silêncios que escolhi,
nos destinos que deixei intactos.

Cada caminho não trilhado
é uma história que repousa
no fundo do peito,
não como arrependimento,
mas como jardim secreto:
cheio de possibilidades
que não floresceram,
mas perfumam o ar do mesmo jeito.

Não os percorri, é verdade.
Mas, de certo modo,
eles também me moldaram.
Os caminhos que eu não vivi
são parte do que sou.
Como as palavras que não disse,
mas ainda moram na boca,
esperando um poema.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

ECOS DE ASFALTO

 

Ecos de Asfalto

o asfalto guarda histórias
que ninguém mais escuta
passos que deixaram marcas
e vozes que se perderam no vento

cada rachadura é um verso
cada mancha, um segredo
o concreto respira passado
em silêncio urbano

eu caminho por essa pele fria
onde o tempo escreve
e reescreve
as memórias invisíveis

os ecos do asfalto
me falam em murmúrios
de quem passou
e de quem ficou

e mesmo na pressa da cidade
há um canto
uma lembrança
um lugar para ser ouvido

AS RUAS QUE ME INVENTAM

 

As Ruas que Me Inventam

Caminho sem pressa
pelas esquinas do acaso
onde o concreto conta histórias
e o vento sussurra segredos

cada rua tem um nome
e uma memória solta
um riso perdido
uma sombra que dança

sou feito do que andei
do que deixei para trás
das portas que não bati
e das que se abriram sem aviso

nessas ruas encontro
fragmentos de mim mesmo
no olhar do desconhecido
no passo apressado

não busco destino
mas me deixo inventar
a cada esquina,
a cada passo,
uma nova versão de mim

segunda-feira, 20 de maio de 2024

NO LABIRINTO DE ESPELHOS

 

No Labirinto de Espelhos

No centro do silêncio,
o tempo não corre.
Ele se quebra —
como vidro sob pressão invisível.

Espelhos por toda parte,
não refletem o que fui,
mas o que poderia ter sido
em infinitas versões de mim.

Os relógios,
pendurados no ar rarefeito,
não tique­tacam,
não avançam —
são testemunhas estáticas
de um agora que se alonga
como uma respiração contida.

Teus olhos,
não janelas,
mas portais.

Mergulhei.

Não houve som, nem resistência.
Apenas o cair —
leve e definitivo.

Ali,
sob o vidro líquido do teu olhar,
cresciam cidades invisíveis,
estradas feitas de intuição,
mares sem bússola
onde navegar era lembrar.

Nesse mundo novo,
o amor
não era susto,
nem faísca,
mas gravidade.
Uma lei inevitável,
calma e total.

Perdi-me.
Ou talvez me desfiz
das margens.

E no azul sem contorno,
soube:
pertencer
é deixar de procurar saída.

domingo, 19 de maio de 2024

O DIA EM QUE DESISTI DE ENTENDER

 O DIA EM QUE DESISTI DE ENTENDER

achei que amor era fórmula
que bastava seguir as instruções

mas você veio com perguntas demais
e respostas de menos

e algo em mim —
muito mais teimosia do que razão —
começou a escutar

escutei a dor sem nome
o cansaço sem fala
a verdade que não pede licença

então larguei o manual
e fui com você
cruzar a rua
sem rumo
sem certeza

e de repente
o centro da cidade
virou o centro de tudo

e o amor
não precisou mais
ser explicado.

MAPA TÁTIL

 

MAPA TÁTIL

entendi tudo
no momento em que tua mão
não desviou

ficou
respondeu sem palavras
o que minha boca nunca ousou dizer

foi um toque calmo
um gesto sem roteiro
mas com a força de um poema

teu gesto desenhava em mim
um mapa secreto
com ruas que levavam ao mesmo lugar

e quando nos vimos
presas um do outro
nesse labirinto de pele e intenção
sabíamos:
era ali que se morava

nossos olhos —
duas janelas escancaradas
por onde passavam
todas as verdades
que o toque traduziu.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

NOVA VESTIMENTA

NOVA VESTIMENTA 

o suor que foi gasto
e derramado
em tão pouco tempo
teve o dom de vestir em nós,
em nossos poros,
a mais linda roupagem,
o mais belo manto,
o mais brilhante
e ajaezado costume,
batizando-nos corpo
e coragem.

cumplicidade feita
de vai-e-vens,
olhos e espelhos,
num jogo de sedução
e descobertas.

alguns sons de outros tempos
ressoando
em lembranças vagas,
alavancando sonhos.

vestidos de suores,
iniciamos outra história,
outras tantas esperanças,
no dia em que o gozo
alcançou a glória.