Organizei minhas caixinhas internas
Demorei.
Mas um dia sentei comigo
e fui abrindo as gavetas da alma,
aquelas que eu fingia que não existiam.
Tinha poeira de
antigas promessas,
bilhetes amassados de amores mal passados,
retalhos de silêncios guardados
como se fossem culpa.
Organizei minhas
caixinhas internas
com o cuidado de quem mexe em espelhos.
Não joguei tudo fora —
guardei o que ainda pulsa,
despedacei o que já era peso.
Coloquei
etiquetas invisíveis:
“não insistir”,
“ainda dói, mas passa”,
“lembrança boa, não abrir todo dia”.
Dobrei saudades
com delicadeza,
separei medos por tamanho,
encaixei um futuro pequeno
entre duas esperanças de tamanho médio.
E quando fechei
tudo,
não senti alívio —
senti espaço.
Agora há lugar
dentro de mim
pra uma nova bagunça,
mas com mais consciência,
mais ternura,
menos pressa.
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Aqui dentro, cabe mais silêncio agora
Depois que mexi
nas gavetas,
alguma coisa se alargou em mim.
Não é ausência,
é espaço.
Não é vazio,
é pausa.
Aqui dentro,
cabe mais silêncio agora —
não o silêncio da fuga,
mas o que escuta,
o que acolhe.
Silêncio que
conversa com o tempo,
que não pressiona respostas,
que sabe que há dores
que só se curam no escuro.
Aprendi a não
preencher tudo.
A não encher as horas de vozes,
os dias de tarefas,
o peito de urgências.
O silêncio agora
é mobília:
me serve de abrigo,
de chão firme,
de ponto de respiro
no meio do mundo que grita.
E às vezes,
no meio desse silêncio novo,
escuto um som pequeno
vindo de dentro —
algo que talvez seja alegria
reaprendendo a crescer.
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Me tornei casa para mim
Depois de tanta
porta batida,
de tanto teto que ruiu sem aviso,
descobri:
eu podia ser abrigo.
Sem precisar me
explicar.
Sem precisar caber no desenho dos outros.
Me tornei casa para mim,
com janelas que só abro quando quero
e luz acesa no quarto da calma.
Não foi fácil —
aprendi a lixar minhas arestas,
a consertar o que ninguém via,
a pintar paredes internas
com as cores que me faltavam por fora.
Há dias em que
ainda venta por dentro.
Mas hoje,
sei fechar as cortinas,
acender uma vela,
e esperar passar.
Reinaugurei meu
coração
com um tapete de boas-vindas
e uma placa na porta:
“aqui mora quem ficou,
mesmo depois de tudo”.
Me tornei casa
para mim.
E isso não me isola —
me prepara.
Pra receber sem perder,
pra amar sem me deixar do lado de fora.
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A chave ficou comigo
Não tranquei por
medo.
Fechei por cuidado.
A chave ficou comigo
como quem aprende, enfim,
que estar aberto não é estar exposto.
Por muito tempo
deixei portas escancaradas
esperando que alguém entrasse
e me dissesse quem eu era.
Hoje, sei:
quem atravessa sem bater,
às vezes, só vem bagunçar.
A chave ficou
comigo.
E não é segredo,
é escolha.
Aprendi a escutar o som dos passos
antes de destrancar.
Algumas visitas,
deixo no jardim.
Outras, convido pra sentar
no sofá das histórias que doem menos.
Agora sei trancar
sem me fechar,
abrir sem me perder,
ficar sozinho sem me abandonar.
Carrego a chave
comigo
como quem carrega um amuleto:
não pra impedir o mundo,
mas pra lembrar que eu posso voltar
quando quiser.
E isso —
essa liberdade de sair e voltar pra mim —
foi o que me salvou.