sexta-feira, 24 de maio de 2024

ORGANIZEI MINHAS CAIXINHAS INTERNAS

 

Organizei minhas caixinhas internas

Demorei.
Mas um dia sentei comigo
e fui abrindo as gavetas da alma,
aquelas que eu fingia que não existiam.

Tinha poeira de antigas promessas,
bilhetes amassados de amores mal passados,
retalhos de silêncios guardados
como se fossem culpa.

Organizei minhas caixinhas internas
com o cuidado de quem mexe em espelhos.
Não joguei tudo fora —
guardei o que ainda pulsa,
despedacei o que já era peso.

Coloquei etiquetas invisíveis:
“não insistir”,
“ainda dói, mas passa”,
“lembrança boa, não abrir todo dia”.

Dobrei saudades com delicadeza,
separei medos por tamanho,
encaixei um futuro pequeno
entre duas esperanças de tamanho médio.

E quando fechei tudo,
não senti alívio —
senti espaço.

Agora há lugar dentro de mim
pra uma nova bagunça,
mas com mais consciência,
mais ternura,
menos pressa.


~^^^^^^^^^^^^^^^^^^~~~


Aqui dentro, cabe mais silêncio agora

Depois que mexi nas gavetas,
alguma coisa se alargou em mim.
Não é ausência,
é espaço.
Não é vazio,
é pausa.

Aqui dentro,
cabe mais silêncio agora —
não o silêncio da fuga,
mas o que escuta,
o que acolhe.

Silêncio que conversa com o tempo,
que não pressiona respostas,
que sabe que há dores
que só se curam no escuro.

Aprendi a não preencher tudo.
A não encher as horas de vozes,
os dias de tarefas,
o peito de urgências.

O silêncio agora é mobília:
me serve de abrigo,
de chão firme,
de ponto de respiro
no meio do mundo que grita.

E às vezes,
no meio desse silêncio novo,
escuto um som pequeno
vindo de dentro —
algo que talvez seja alegria
reaprendendo a crescer.


^^^^^^^^^^^^^^^^


Me tornei casa para mim

Depois de tanta porta batida,
de tanto teto que ruiu sem aviso,
descobri:
eu podia ser abrigo.

Sem precisar me explicar.
Sem precisar caber no desenho dos outros.
Me tornei casa para mim,
com janelas que só abro quando quero
e luz acesa no quarto da calma.

Não foi fácil —
aprendi a lixar minhas arestas,
a consertar o que ninguém via,
a pintar paredes internas
com as cores que me faltavam por fora.

Há dias em que ainda venta por dentro.
Mas hoje,
sei fechar as cortinas,
acender uma vela,
e esperar passar.

Reinaugurei meu coração
com um tapete de boas-vindas
e uma placa na porta:
“aqui mora quem ficou,
mesmo depois de tudo”.

Me tornei casa para mim.
E isso não me isola —
me prepara.
Pra receber sem perder,
pra amar sem me deixar do lado de fora.


^^^^^^^^^^^^


A chave ficou comigo

Não tranquei por medo.
Fechei por cuidado.
A chave ficou comigo
como quem aprende, enfim,
que estar aberto não é estar exposto.

Por muito tempo deixei portas escancaradas
esperando que alguém entrasse
e me dissesse quem eu era.
Hoje, sei:
quem atravessa sem bater,
às vezes, só vem bagunçar.

A chave ficou comigo.
E não é segredo,
é escolha.
Aprendi a escutar o som dos passos
antes de destrancar.

Algumas visitas, deixo no jardim.
Outras, convido pra sentar
no sofá das histórias que doem menos.

Agora sei trancar sem me fechar,
abrir sem me perder,
ficar sozinho sem me abandonar.

Carrego a chave comigo
como quem carrega um amuleto:
não pra impedir o mundo,
mas pra lembrar que eu posso voltar
quando quiser.

E isso —
essa liberdade de sair e voltar pra mim —
foi o que me salvou.

 

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário