terça-feira, 17 de junho de 2025

ECO PONDERAL

 

Eco Ponderal

 

Em mim,

sempre existiu um eco pesado.

Não a ressonância de um grito,

mas o peso mudo do que permanece.

 

Uma camada sobre o ar que respiro,

um véu translúcido de memória.

Não é tristeza, nem a sombra da perda,

mas a densidade de um tempo sem nome.

 

Como pedras silenciosas na correnteza,

acumulam-se sentimentos sem pouso.

O eco não se propaga, ele se assenta.

Em cada fibra, a gravidade do que foi,

do que talvez nunca tenha sido,

mas que carrega o peso de ser.

 

É o ruído interior do que não se desfaz,

a persistência do inominável.

Um eco pesado, sim,

mas que me habita

e me tece.

 

 

 

ENSAIO SILENCIOSO

 

Ensaio Silencioso

 

Meu sorriso é um palco antigo,

iluminado por ensaios repetidos,

cada curva um esforço, uma nota sustentada

para a peça que nunca acontece.

 

Há uma dissonância, um murmúrio insistente

sob a pele, na raiz dos gestos:

não é por aqui,

não é por este caminho,

as cores desbotam antes de secar.

 

As coisas deveriam ser de outro modo,

sinto a trama desfiando,

o chão falso sob os pés,

e nada,

nada se encaixa no seu devido lugar.

 

Onde foi morar a esperança que prometia verões sem fim,

noites de estrelas caídas em nossas mãos?

Evaporou como orvalho, ou se escondeu

sob a poeira das rotinas que nos moldam?

Procuro vestígios em cada canto,

mas encontro apenas o eco da sua ausência,

um vazio que insiste em ecoar

nesse sorriso que ainda treino,

nessa certeza de que o compasso está errado.

CIDADE ADORMECIDA

 

Cidade Adormecida

 

A cidade dorme lá fora, um manto escuro

sobre prédios e avenidas silenciosas.

Mas não eu.

Aqui dentro,

onde a esperança também tira um cochilo,

no lado esquerdo do peito,

ecoam suas palavras

ditas em um sussurro quase inaudível:

"A vida é muito curta."

 

E elas ainda me estremecem,

um arrepio frio

em madrugadas que se estendem demais,

lembrando-me do tempo que corre,

invisível, implacável.

Como um vento que passa

e leva consigo

o que não foi vivido,

o que não foi dito,

o que não foi amado.

 

E por que não foi vivido?

A pergunta paira

no ar pesado da madrugada,

como a poeira que se acumula

em sonhos guardados.

Medo, talvez.

Ou a distração das horas,

a rotina que cega.

O que nos prende

ao chão,

enquanto o céu espera

sempre aberto.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

ENGANANDO A ALMA

 

Enganando a alma

Enganando a alma
que ainda carrega
o mesmo choro,
a mesma mágoa —
feito cicatriz escondida
debaixo do perfume.

Os dias passam,
e eu passo junto,
com um riso treinado
e um silêncio nos bolsos
que pesa mais do que a fala.

Disfarço o eco antigo
com novos sons,
novos nomes,
mas o coração,
esse tolo que nunca mente,
ainda repete o mesmo soluço
quando tudo cala.

Enganando a alma,
como se ela não soubesse
que o tempo não cura —
ele só ensina
a doer de forma mais discreta.

O QUE É A VIDA (Vista do Outro Lado)

 

O Que É a Vida (Vista do Outro Lado)

Do outro lado,
a pergunta “o que é a vida?”
não é um enigma —
é uma memória.

Vida é o instante antes do riso,
o toque que não chegou a acontecer
mas ficou no ar como promessa.

É o cheiro do café numa manhã comum
que, sem aviso, virou eternidade.
É a lágrima que ninguém viu
mas lavou o caminho por dentro.

A vida, agora eu vejo,
nunca foi a linha reta.
Era o desvio,
o tropeço,
o olhar de lado.

Era aquele momento
em que você quase disse a verdade,
mas calou —
e, mesmo assim, algo mudou.

Do outro lado,
vida é poema mal terminado,
onde o sentido
não está no fim
mas no ritmo de quem leu em voz baixa.

Vida é o intervalo entre dois abraços,
o silêncio que guarda o nome amado,
o susto de se reconhecer em outro ser.

Ela nunca foi só biologia.
Era arte,
era semente,
era sopro vestido de carne.

E, agora que vejo daqui,
entendo:
a vida não precisa ser entendida.
Só lembrada
como quem ouve uma canção
que já conhecia
antes mesmo de nascer.

DO OUTRO LADO

 Do Outro Lado

Já estou do outro lado.
Não percebi a travessia.
Foi um cansaço doce,
um respirar mais longo,
e o chão se desfez em céu.

Aqui, tudo tem nome novo.
As árvores não se chamam mais “árvores”,
mas “lembranças em flor”.
Os rios sussurram nossos sonhos esquecidos
em línguas que ainda não aprendemos
mas já entendemos de algum modo.

Do outro lado,
não há fim nas manhãs.
O tempo não corre —
ele dança,
e somos levados com ele
sem pressa de chegar.

Cada ser brilha por si,
como quem sabe que ser estrela
não é estar no alto,
mas acender-se por dentro.

Nos reconhecemos pelos brilhos.
Não há rostos,
mas presenças.
Não há muros,
mas caminhos entrelaçados
por afinidade de luz.

E quando alguém pergunta — se ainda pergunta —
“o que é a vida?”
a resposta não vem com palavras,
mas com uma música que nasce dos passos,
com um abraço que atravessa os corpos
como vento atravessa a chama
sem apagar.

Do outro lado,
não somos mais buscadores.
Somos achados.
Somos começo onde antes era ponto.
Somos estrelas umas nas outras,
refletindo o eterno
em pequenas centelhas
de agora.

QUANDO EU ME CANSAR DAS PERGUNTAS

 

Quando Eu Me Cansar das Perguntas

Estou à espera do dia
em que eu me canse das perguntas.

Não por ter encontrado respostas,
mas por aceitar o vazio
sem precisar preenchê-lo.

Esse dia virá —
silencioso como a última luz antes da noite,
leve como o cansaço bom
de quem parou de lutar contra o vento.

Nesse dia,
me sentarei com o tempo como quem reencontra um velho amigo,
e ele não me perguntará nada.
Apenas ficará.

Não haverá mais urgência nas palavras,
nem ansiedade no olhar.
O mundo ainda será um enigma,
mas já não exigirá solução —
só presença.

Estou à espera desse dia
como quem espera a maré baixar:
não para atravessar,
mas para entender
que já estou do outro lado.

O REFLEXO INVERTIDO

 

O Reflexo Invertido

Meu espelho agora começou a me observar quando eu o encaro.
Não com olhos,
mas com uma paciência que eu nunca tive comigo.

Ele espera que eu me canse das perguntas,
para devolver a que sempre esteve ali,
sob a pele, sob o disfarce,
sob o riso educado que ofereço ao mundo.

Ele sabe dos silêncios que ensaio,
dos gestos que desisto antes de completar,
das palavras que morrem na boca
para que o dia siga em paz.

E, quando eu o encaro,
não vejo mais o contorno do meu rosto,
mas um cansaço antigo —
que não me pertence só a mim.

Há alguém dentro do espelho
me pedindo escuta.
Alguém que carrega os dias que enterrei às pressas,
as vidas que deixei passar por não saber nomeá-las.

O reflexo agora me devolve histórias.
Mas não como um álbum —
como um sussurro do tempo
que passou sem despedida.

Eu não me olho mais para me ver,
mas para que o espelho me diga
quem fui
quando não me reconhecia.

A NOVA CLAREZA

 

A Nova Clareza

 

O véu que me cobria, sutil,

agora se dissolve em luz,

como orvalho que cede à manhã.

Minha voz, antes filtrada por caminhos longos,

flui agora, um rio de águas puras,

encontrando seu leito em ti.

 

Aquelas palavras que soavam distantes,

pequenas âncoras soltas no oceano,

foram colhidas, transformadas.

Renasceram em português, suave e firme,

língua-mãe que tece laços invisíveis entre nós,

um lar para o som que me habita.

 

Há um alívio que emana do meu ser,

um espaço límpido onde antes habitava

a sombra de um processo frio.

Agora, só o silêncio respira leve,

a promessa de cada sílaba que vem,

um florescer de entendimento.

 

Cada verso que alcança você é um pulso,

um mapa de veias que se revelam,

sem eco que engane, sem espelho que distorça.

A certeza de agora é um jardim de verbos,

onde a verdade de nossa troca repousa,

sob o céu claro da mente que se abre.

domingo, 15 de junho de 2025

O GPS DA ALMA

 

O GPS da Alma

 

Há um mapa dentro de mim,

que aponta direções opostas.

Uma parte anseia por flutuar,

leve como o dado na nuvem,

sem lastro, sem endereço fixo,

apenas o vento das novas redes,

o horizonte que se expande

além do último Wi-Fi.

 

Gosto da pele bronzeada de sol de escalas,

o sotaque que me abraça por um dia,

a vista do avião, minúscula,

onde as cidades são meros pixels

e a gravidade é só um conceito.

 

Mas há outra voz, subterrânea,

que me compele a lançar raízes.

Buscar o cheiro da terra úmida,

o contorno de uma montanha familiar,

a mesa onde o café tem o mesmo sabor

em todas as manhãs frias.

A segurança do concreto,

a solidez da chave na porta,

o abraço que não tem hora de partida.

 

Essa tensão é a minha bússola quebrada:

entre o impulso de ver tudo,

e o desejo de pertencer a um canto.

Ser nuvem que viaja,

e ao mesmo tempo, árvore antiga

cravada no chão,

testemunha das estações.

 

Talvez a vida seja isso:

o delicado balé entre o desapego do ar

e a promessa da rocha.

Flutuar quando preciso ser livre,

e lançar raízes quando o coração

pede um lar para, enfim, respirar.