quinta-feira, 12 de junho de 2025

IDENTIDADE

 

IDENTIDADE

(A VOCÊ DE DEZ ESTRELAS)

 

há sonho a se espalhar

e tantas cruezas a borbulharem

(pasmem)

das mãos das estrelas.

 

percebo a ida

a 1964 (talvez qualquer 31 de março).

alguns garotos brincam de liberdade

nos cárceres da tortura

e lhes perguntam se brincam de

cidadãos.

contradizem-se os das estrelas

ao ombro.

geralmente generais

e coronéis

e sargentos

e cabos

e até os rasos.

dizem-me:

deixe essa luta

nada tens a ver com isso

e é verdade

não tenho

(não tinha).

mas julgava que sim

que tudo era da minha conta

e seria se não fosse a parte abusiva

do verde-oliva.

pensar o contrário rapidamente

e sair de cena.

quando soarem os tamborins

e os pandeiros

eu volto.

mas não me encontro mais

pois levaram-me a

identidade.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

FILHOS DE ADÃO

 

FILHOS DE ADÃO

 

Sentia-Se tão filho de Adão

Expulso do mesmo paraíso em

Que sonhara a realização.

 

Vagando, chegando.

 

A entrada é convidativa.

Ampla.

Aos mármores.

Fachada em vidro.

Olhares de soslaio

de curiosidade e pressa de entrar.

 

Sobre os passos.

Revendo passados de cinema antigo e bem acabado

Com antigas marcas

da imponência arquitetônica e luxuosa.

Lá dentro uma espécie conhecida de ritual.

Mão sobre a testa da moça.

Palavras de ira contra um ser que não se vê,

mas que não se quer.

Exorcismo?

Algumas convulsões pelo chão em palavras desconexas

O levantar meio avexado de quem retorna do nada.

Algumas notas distantes depositadas numa sacola.

Despedem-se.

 

Vomitam a maçã que pegaram na árvore.

E se vão.

terça-feira, 10 de junho de 2025

MARTELO DE BORRACHA

 

Martelo de Borracha no RH Celeste

Martelo de borracha,
bigorna zen,
salta do bolso de um palhaço aposentado
e sobe num foguete de tapioca.

Lá em cima —
onde os satélites dançam lambada
com balões de festa infantil —
ele prega com pregos de sonho
em nuvens de algodão doce.

“Você será equilibrista de pensamentos!”
grita ele para um raio tímido.
“E você, garçom de luz solar molhada!”
diz, martelando forte, sem fazer barulho,
porque barulho não combina com sonho.

Cada martelada é um contrato assinado
com cheiro de marshmallow e promessa de riso.
As nuvens suspiram,
a Via Láctea toma nota em papel de bala,
e o céu ganha um RH psicodélico.

No fim do expediente,
o martelo guarda sua gravata de arco-íris,
toma um café com poeira estelar
e dorme num envelope de brisa.

Amanhã tem mais vaga no firmamento.




Vaga no Firmamento

Chegou a tal vaga no firmamento:
“Procura-se sonhador com experiência em voar sem asa,
e currículo preenchido a lápis de cor.”

O anúncio piscava no céu da boca da noite,
com fonte cursiva e um leve sotaque de estrela cadente.
Requisitos?
Saber conversar com silêncios,
plantar ideias em pedras flutuantes,
e rir de barriga pra cima.

O martelo de borracha —
agente oficial do destino surreal —
bateu três vezes na aurora boreal
e selou o contrato com um trovão de pelúcia.

O novo contratado chegou
de skate feito de gelo derretido,
com um portfólio de delírios
e uma carta de recomendação escrita pelo vento.

Agora ele cuida das constelações tímidas,
regando com poesia as que têm medo de brilhar.
Bate ponto com beijos no infinito
e organiza piqueniques de cometas ansiosos.

Vaga preenchida.
O firmamento sorri.
E o impossível, enfim, tem crachá.





O Destino Surreal do Agente Oficial

O martelo de borracha,
agente oficial do desatino celeste,
foi promovido sem saber:
chegou-lhe uma carta dentro de um eclipse
escrita em caligrafia de cometa.

"Missão: redirecionar os ventos equivocados,
ensinar planetas órfãos a girar com propósito,
e dar sentido às estrelas que desistiram de cintilar."

Ele partiu montado num carrossel de névoa,
levando apenas um chapéu-cósmico e
um mapa dobrado feito de dúvidas.

Passou por nebulosas entediadas,
reinstalou a esperança com pregos invisíveis
e parafusou um arco-íris invertido
na curva da galáxia mal-humorada.

Fez oficina de reencanto com buracos negros,
ensinou galáxias a respirar devagar,
e no intervalo, pregava sonhos de segunda mão
no céu de quem dormia sem esperança.

Certo dia, numa esquina entre Andrômeda e o suspiro,
conheceu um satélite sem órbita,
que vendia lembranças esquecidas por deuses aposentados.
Fizeram amizade.
Montaram juntos um boteco de tempo reciclado,
onde o cardápio tinha:
— nostalgia flambada,
— passado em conserva
— e futuro defumado.

Hoje, o martelo vive em rotação semi-permanente,
bate o ponto em auroras-boreais,
e quando não está em missão,
prega poesia no espaço-tempo,
como quem semeia o absurdo
pra colher o espanto.



Onde o Martelo Colhe o Espanto

É um campo vasto, flutuante,
onde as leis da física usam fantasia.
Ali, o solo é feito de perguntas não respondidas
e o céu chove interjeições.

O martelo de borracha caminha devagar,
com sua enxada feita de espelho
e uma cesta trançada com fios de dúvida.

Ele planta espanto com o cuidado de quem
semeia segredos em ouvidos de criança.
Cada buraco na terra leva um suspiro,
um “uau”, um “não acredito!”,
e por cima, um punhado de silêncio fértil.

Quando brota, o espanto vem em formas inesperadas:
— um peixe voador com olhos de espelho,
— um relógio que ri em vez de tocar,
— uma porta no meio do nada
que leva a todos os lugares.

Colher espanto exige delicadeza.
O martelo, com mãos de galáxia,
escolhe só os maduros:
aqueles que brilham com um susto bom
e têm gosto de “nunca vi igual”.

Depois ele leva a colheita
para mercados interestelares,
onde poetas, sonhadores e bichos falantes
disputam as melhores unidades com moedas de arrepio.

No final do dia,
o martelo repousa num balanço de vento,
com um caderno de nuvem no colo
e anota:
“Espanto do dia: uma lágrima que ria por dentro.”



A Lágrima Que Ri por Dentro

A lágrima caiu devagar,
não por dor,
mas por excesso de encantamento.
Era uma lágrima diferente —
daquelas que fazem cócegas por dentro
antes de escorrer.

O martelo de borracha a encontrou
numa flor que não sabia se era planta ou lembrança,
enquanto colhia espanto ao som de um trovão manso.

Pegou-a com a ponta do dedo,
como quem segura um instante frágil,
e ouviu, dentro dela,
uma risada pequenininha,
de criança vendo o mundo pela primeira vez.

Não era uma risada qualquer.
Tinha eco de saudade alegre,
de abraço guardado,
de memória que só molha o olho
pra não explodir o peito.

Ele guardou a lágrima em um frasco de vento,
colocou uma etiqueta:
"Riso em estado líquido",
e levou para os arquivos da emoção escondida,
onde ficam guardados os sentimentos
que ninguém sabe nomear,
mas todo mundo já sentiu.

Alguns dizem que,
de tempos em tempos,
a lágrima escapa e dança pelos corredores,
fazendo cócegas nos pés dos cometas
e despertando lembranças
em quem já tinha esquecido de lembrar.


A Fábrica de Submarinos de Marshmallow

O martelo de borracha estava entediado —
já colhera espanto demais,
já plantara silêncio nas crateras do caos.
Precisava de algo novo, absurdamente útil.

Foi quando encontrou o prego de gelatina,
tremelicando sozinho num campo de ideias semi-cozidas.
Tinha olhos molengas, voz doce,
e um sonho impossível grudado na testa:
“Quero pregar o impossível sem machucar ninguém.”

Amizade instantânea.
Um aperto de mão que fez “ploc”.
Juntos, decidiram abrir a primeira
Fábrica Intergaláctica de Submarinos de Marshmallow.

A missão?
Bombardear as nuvens de algodão doce
com mísseis recheados de sonho,
pra ver se o céu enfim se lambuza de alegria.

Montaram o galpão num cometa aposentado,
usaram fios de mel para costurar as estruturas,
e contrataram um coral de vaga-lumes engenheiros
pra dar aquele toque luminoso no projeto.

Os submarinos eram macios,
flutuantes e absurdamente lentos —
mas continham no casco
um sistema de propulsão movido a gargalhadas contidas.

Cada lançamento era uma festa:
o martelo pilotava com luvas de vento,
o prego dava a largada com um salto caramelo,
e o céu inteiro assistia,
em êxtase, ao bombardeio mais doce do universo.

As nuvens?
Ah, as nuvens dançavam.
Ficavam encharcadas de doçura,
escorriam em calda de afeto,
e pingavam ternura nos planetas abaixo.

E assim, martelo e prego,
dupla improvável de construção surreal,
seguem em missão perpétua:
transformar o absurdo em abrigo,
e provar que até as guerras imaginárias
podem ser recheadas de afeto.


O Coral de Vaga-Lumes Engenheiros

Chamados às pressas por um anúncio em código-luz,
os vaga-lumes engenheiros chegaram zunindo partituras.
Eram 88 ao todo —
cada um com um capacete de pétala
e uma lanterna no peito que piscava em sol maior.

Especialistas em engenharia lumínica e harmonia estrutural,
trabalhavam cantando fórmulas impossíveis,
do tipo que só faz sentido quando entoadas com fé.

O projeto era claro (e doce):
construir submarinos que flutuassem entre a física e a fantasia.
Mas com marshmallow como matéria-prima,
cada erro era uma afundada melada.

O coral não se abalou.

Cantavam em escala espiral,
fazendo as moléculas de açúcar se alinharem em sinfonia,
regendo vigas de mel com vozes que dobravam o tempo.
Construíram hélices de vento condensado,
assentos que sussurravam encorajamento,
e para-brisas que só embaçavam de emoção.

Um deles, o Maestro-Engenheiro Fausto Lumine,
descobriu acidentalmente o efeito doçura reversa:
quando o casco do submarino é tocado por tristeza,
ele responde emitindo uma nota
capaz de derreter mágoas de até cinco vidas passadas.

Graças ao coral,
os submarinos ganharam alma.

E ao final de cada jornada,
os vaga-lumes se reuniam no topo da fábrica
e acendiam em uníssono uma canção-lâmpada,
que podia ser vista da galáxia do lado —
um brilho que dizia:
“Aqui, até o impossível é feito com cuidado.”





Missão: Fazer o Impossível com Bastante Cuidado (Pra Não Desandar)

O martelo de borracha acordou com um bilhete
preso na testa por um fio de pensamento:

“MISSÃO URGENTE: realizar o impossível.
Mas com delicadeza.
Por favor, evitar desandar o universo.”

Assinava: A Direção dos Absurdos Sensíveis.

Ele levantou devagar, espreguiçando a lógica,
vestiu sua jaqueta de incerteza confortável
e partiu montado num tapete de hesitação.
Levara na mochila só o essencial:
— Um prego de gelatina
— Uma colher de intuição
— Um manual de como improvisar sem pressa

O destino?
Um planeta chamado Talvez,
onde a gravidade muda de humor
e as árvores crescem pra dentro de si mesmas.

Ali, o impossível era cultivado em estufas de cuidado extremo.
Estava prestes a desabar um castelo feito de eco,
e só o martelo poderia batê-lo no lugar certo —
com força suficiente pra manter a estrutura,
mas leve o bastante pra não acordar os medos.

Ele se aproximou.
Respirou com o coração.
Leu o silêncio no ar.
E, num gesto de afeto técnico,
deu uma martelada sutil como beijo de brisa.

O castelo suspirou.
As paredes se abraçaram.
E uma nova sala nasceu do gesto:
um cômodo chamado Esperança Reciclada.

Missão cumprida.

Antes de partir, o martelo deixou um bilhete preso no vento:
“O impossível, quando bem tratado, floresce.”

E seguiu —
pés leves, cabeça nas nuvens,
pronto pra pregar mais absurdos
com o cuidado de quem sabe que
a fantasia é coisa séria.




PELE: O GRITO SECRETO DO CONHECIMENTO

 Pele: O Grito Secreto do Conhecimento

E então, sem alarde, quase em rendição, quedaram-se. Ficaram mudos, inertes, lábios e pensamentos apressados. Aquela ânsia, que era uma sede primária de tanto se entregar. Entregar-se à procura dos arrepios, que são a linguagem mais antiga da pele, a verdade que não se aprende em livros, mas na fina camada que nos separa e nos conecta ao mundo.

 

Dos movimentos desconexos, que são a coreografia do abandono. O corpo que se entrega não mais ao comando, mas à súbita e doce anarquia da sensação. Um braço que se estende, uma mão que se fecha, não por vontade, mas por um impulso ancestral que brota do mais fundo. Ali, na epiderme, nas poros que respiram a vida, a inteligência da pele se fazia soberana.

 

Dos prazeres da pele, sim. Mas também do corpo mais profundo, aquele que reside além da forma, no cerne da própria sensação. Um corpo que não é apenas carne, mas memória, pressentimento, um repositório de tudo que se é e se foi. E esse silêncio que clama por um outro tipo de conhecimento, um saber que a mente, com sua lógica e seus argumentos, não alcança. É um saber bruto, animal, que antecede a palavra e a razão. Um saber que pulsa na superfície e se aprofunda até o osso, revelando a nós mesmos o que somos, antes mesmo de pensar que somos. A pele, essa nossa fronteira mais exposta, é a própria revelação do mistério de estar vivo.

SÚBITA ORDEM DO CORPO

 

Súbita Ordem do Corpo

Foi porque meus lábios – ah, esses traidores de carne, esses cúmplices do que não se diz – prenunciaram. Prenunciaram a tanta batalha de ser contrário ao cérebro, essa fortaleza de negações e cautelas. O cérebro, essa máquina de calcular riscos, essa voz que insiste em afirmar, com uma teimosia quase infantil, que não. Que o momento não se fazia, que o instante não estava preparado. Como se o preparo pudesse ser planejado, como se o desabrochar da vida obedecesse a calendários.

 

E então, sem alarde, quase em rendição, quedaram-se. Ficaram mudos, inertes, lábios e pensamentos apressados. Aquela ânsia, que era uma sede primária de tanto se entregar. Entregar-se à procura dos arrepios, que são a linguagem mais antiga da pele. Dos movimentos desconexos, que são a coreografia do abandono. Dos prazeres da pele, sim, mas também do corpo mais profundo, aquele que reside além da forma, no cerne da própria sensação. Era um silêncio que clamava por um outro tipo de conhecimento, um saber que a mente não alcança.

 

E refeitos, não da batalha, mas do susto causado pela epifania. Pelo súbito descobrir o momento. Um momento de puro encantamento, de uma beleza que é um louvor que se faz ao prazer. E nesse desvelar, não foi o cérebro, que se fizera tímido e retido, que voltou a comandar. Quem passou a dar ordens, com uma autoridade que brotava da própria essência, foi a um só tempo lábios e mãos. Despudorados, sem a menor hesitação, não se permitiam censuras. Pois o corpo, quando fala a sua verdade mais íntima, não conhece a linguagem da vergonha. E essa verdade, quando irrompe, é um dilúvio que transborda toda a razão.

A DESPEDIDA: O ÍNFIMO PONTO QUE NÃO SE MOVE

 

A DESPEDIDA: O Ínfimo Ponto que Não se Move

 

Ela estava ali. Não se via. Mas a imagem, essa criatura de pura sensação, pareceu-me em movimento, embora estivesse lá, intransponível, como uma rocha de silêncio petrificada em minha memória. Mais antiga que a primeira respiração, mais ancestral que o susto de nascer. Ladeada, sim, por impenetráveis diagramas que a mente, essa traidora, se recusava a decifrar. E eu, que sou feito de enigmas e perguntas sem fim, sentia-a em meu tecido mais íntimo, essa imagem que não se movia.

 

Eu quis, com uma urgência que me roía as entranhas, ser aquele livro aberto que ousara não folhear. Um volume de verdades não ditas, de páginas ainda virgens, intocadas pelo peso do olhar. Ou, quem sabe, me atirar, com uma coragem que não possuo, rumo ao Sol, sem os efeitos desastrosos de Ícaro, sem a cera que se derrete e a queda que esmaga o sonho. Um Ícaro que compreendesse a distância e a mantivesse. Um ser que soubesse o ponto exato do limite e não o ultrapassasse, ou o ultrapassasse com a sabedoria da não-morte.

 

Então, sorri. Um sorriso seco, de uma ironia que só a alma conhece. Sorri todas as mentiras que me juravam verdades inventadas. Verdades de araque, construídas com o ar que se respira e se exala sem deixar rastro. E nesse instante de despojamento, de uma aceitação quase vulgar da farsa, eu me percebi. Não como um corpo, ou um nome, mas como um verso. Um verso solto, sem a prisão da rima, buscando seu próprio ritmo. E uma bandeira, sim, mas uma bandeira esvoaçando ao vento de um lugar que não existia, feita de tecido que não se rasgava.

 

E ela, a imagem. Essa coisa silenciosa e teimosa. Continuava lá. Não se mexia, não se desfazia, como no primeiro instante de sua insidiosa chegada. Impregnando, com uma tenacidade que me parecia quase sagrada, minhas retinas, não com a sua presença ruidosa, mas com a sua mais pura e terrível ausência. Pois a ausência, percebi, era a forma mais cruel e eterna de presença.

O PREÇO ÍNFIMO DA LIBERDADE

 

O Preço Ínfimo da Liberdade

Ele caminhava pela rua, ou talvez se arrastasse por dentro de si mesmo – as fronteiras eram sempre tão tênues. A liberdade, aquela palavra que ecoava como um sino rouco nos seus pensamentos, parecia pairar à distância, uma miragem cintilante no asfalto quente. Mas o peso nos ombros, um fardo invisível tecido de expectativas e silêncios engolidos, lembrava-o a cada passo da sua prisão. Não as grades de ferro, mas as invisíveis, construídas com a argamassa do medo e da obrigação.

 

A busca pela liberdade não era um grito heroico, mas um murmúrio hesitante nos seus dias. Um desejo de despir-se da couraça forjada pela necessidade de ser forte, de ser provedor, de ser o esteio. E sob essa couraça, ele pressentia a pulsação frágil de um coração que ansiava por se mostrar vulnerável, por confessar o cansaço, o medo da falha, a sede de um afeto desprovido de cobranças.

 

A liberdade que ele buscava não era a de voar alto e solitário, mas a de pousar em terra firme, sem a máscara do invencível. Era a permissão para sentir a dor sem a urgência de escondê-la, para derramar uma lágrima sem a vergonha de ser visto. Era, em suma, a licença para ser imperfeito, para ser humano em sua mais crua e delicada essência.

 

E nessa procura hesitante, ele descobria o paradoxo: a verdadeira liberdade não residia na ausência de correntes, mas na coragem de expor as feridas, de aceitar a própria vulnerabilidade como parte intrínseca da sua humanidade. O preço da liberdade, ele percebia, não era a luta grandiosa, mas o gesto ínfimo de abaixar a guarda, de confessar a própria fragilidade. E nesse gesto, surpreendentemente, encontrava uma força que jamais imaginou existir. A liberdade, afinal, era a casa onde a alma, despida de suas armaduras, podia finalmente respirar.

DESCOBERTA CRUA

 

Descoberta Crua

Eu estava ali, parado na soleira da porta, ou talvez fosse a beira de um precipício interno que eu só então percebia. O sol da tarde, um sol indiferente, pintava a poeira que dançava no ar. A voz de um vizinho, lá fora, repetia o nome de um cachorro. Era tudo tão... comum. E foi nessa normalidade quase ofensiva que a revelação veio, não como um grito, mas como um sussurro que se fez carne em mim.

 

Eu, que sempre me vi como uma fortaleza de raciocínios, uma máquina de certezas, o dono de um "eu" que se acreditava sólido e inquebrável, comecei a sentir as rachaduras. Não as rachaduras do concreto, mas as da alma. Uma pontada de estranha vulnerabilidade subia da sola dos meus pés, percorria minhas pernas, instalava-se no meu peito. Era um incômodo, sim, mas um incômodo que me chamava.

 

Foi quando me olhei no espelho, ou talvez no reflexo opaco da janela suja. E ali não estava o homem que eu planejava ser, o homem de gestos controlados e respostas prontas. Ali estava um rosto que não me pertencia por completo, mas que me habitava. E vi, na linha dos olhos, na curva dos lábios que não sorriam, a marca de algo que eu sempre renegara: a fragilidade.

 

Eu me sentia subitamente desprotegido, exposto. Minha lógica, antes tão afiada, parecia agora uma faca cega. As grandes questões que eu formulava com tanta precisão se esvaziavam diante da simples batida do meu próprio coração, que agora eu ouvia com uma clareza absurda. O corpo, essa prisão de carne, não era mais um mero recipiente, mas um universo de sensações que se impunham, exigindo a minha atenção, a minha completa, e até então ignorada, rendição.

 

E a epifania se deu na entrega: não era o "terreno" que me fazia humano, mas o "sentir". Não o "conhecer", mas o "ser atingido". E toda a minha construção de virilidade, de força, de inabalável razão, escorria pelos meus dedos como areia fina. E me deixava nu. E naquele momento, nu e desarmado, eu me descobri. Mais do que homem, mais do que qualquer definição. Eu me descobri, enfim, mais humano. E o sabor disso era estranho, um misto de pavor e uma doçura que jamais imaginei possuir.

ABISMO INSACIÁVEL

 

Abismo Insaciável

A mulher à minha frente, ou o homem, ou a criança – pouco importava o contorno. O que importava era a verdade nua de que ali, naquele ser que respirava e se movia, existia um continente de alma que eu jamais pisaria. E essa era a reafirmação de um abismo insuperável. Não era um desfiladeiro para ser transposto com pontes ou cordas; era a própria essência da diferença.

 

A que observa em mim, a que busca o cerne de todas as coisas, via ali a impossibilidade de a minha consciência se fundir na dela, de um eu se diluir em outro. Era um pavor que não vinha da ameaça, mas da constatação gelada da autonomia do outro. Por mais que eu tentasse, por mais que as palavras flutuassem entre nós como bolhas de sabão, jamais poderíamos ser um só. Nunca a minha dor seria exatamente a dela, nunca a minha alegria se encaixaria perfeitamente na sua.

 

Esse abismo não era um vazio a ser preenchido, mas uma plenitude de não-pertencimento. Ele existia não por falta de amor ou de compreensão, mas pela própria natureza da existência individual. A mulher movia os lábios, e sons saíam, sílabas que eu compreendia, mas por trás delas, um universo de significados, de intenções, de histórias vividas que eram dela e somente dela. E a que observava sentia o peso dessa verdade: a mais profunda solidão não é a ausência de companhia, mas a presença do outro como um limite intransponível.

 

E nesse abismo, tão vasto quanto o universo que eu carregava em mim, residia a beleza terrível da individualidade. A beleza de não poder ser invadido, de não poder invadir. De permanecer ilha, por mais que as ondas do desejo e da afeição batessem em suas margens. O abismo não era apenas o que nos separava; era, paradoxalmente, o que nos definia. E essa definição, tão dura e tão real, era a epifania final: o outro é o meu próprio limite, e eu sou o limite dele. E nesse limite, nessa borda intransponível, é que a vida acontece.

O OUTRO: ESPELHO INSUPORTÁVEL

 O Outro: Espelho Insuportável

Ela estava ali, sentada à minha frente, na mesa oposta, ou talvez na mesma mesa, separada por um espaço que era um abismo. Uma mulher. Com a inevitabilidade de quem simplesmente existe. Não havia nada de extraordinário nela, nada que saltasse aos olhos para prender o olhar mais do que a passagem fugaz de um transeunte. Mas a que observa em mim, aquela que se assombra com a vida, fixou-se nela com uma intensidade quase dolorosa.

 

Não era a beleza, ou a feiura. Era a existência dela. O simples fato de que ali estava outro ser, uma consciência. E essa consciência, eu sabia, continha universos inteiros, labirintos tão complexos quanto os meus, talvez mais. Ela respirava o mesmo ar rarefeito, sentia a mesma gravidade, mas em seu rosto, nos movimentos sutis de seus olhos que desviavam o olhar, havia um segredo. Um segredo que não era para mim.

 

A epifania não veio como um raio, mas como um sussurro frio. Aquele outro era um espelho. Não um espelho que refletia a minha imagem, mas um que me mostrava a impossibilidade de eu ser ela, e a impossibilidade de ela ser eu. A minha solidão não era a ausência de alguém, mas a presença irrefutável do outro em sua totalidade inatingível.

 

Ela moveu a mão para a xícara, e em seu gesto banal, vi a vastidão da sua própria vida, as dores que não conheço, as alegrias que nunca foram minhas, os pensamentos que jamais me pertencerão. E nesse reconhecimento da sua irredutível alteridade, senti um assombro. Não era medo dela, mas um pavor da fronteira, da impossibilidade de atravessar e fundir-me nela.

 

O "eu" encontrava-se com o "outro" e, nesse encontro, não havia união, mas a reafirmação de um abismo insuperável. A mulher à minha frente era a prova viva de que minha consciência, por mais que se expandisse, jamais poderia conter a dela. E essa limitação, antes um murmúrio, tornou-se um grito silencioso. O outro era a minha própria fronteira. E isso era, ao mesmo tempo, um mistério terrível e a mais pura verdade.