segunda-feira, 9 de maio de 2022

TAMBÉM VOU SER POETA

 

TAMBÉM VOU SER POETA 

também queria viajar,
ir e ficar
em pasárgada (sei lá).
e, pelo estatuto do poeta,
tenho direito a pagar meia passagem —
e o pagamento será feito em gramas de sonho.

rompendo as ânsias e lá chegando,
tenho direito ainda
a fixar residência
onde bem me aprouver,
desde que haja cachoeiras por perto
e libélulas gritem cantos
como cotovias,
e sabiás saibam seus ninhos nas palmeiras,
e que explodam girassóis
desde o mais tenro início de inverno,
que não poderá ser
nem muito frio
nem muito distante.

não quero que haja reis,
e sim princesas,
e rainhas brotem aos cachos
como pingo-de-ouro,
e se deixem ser amadas
por seus cavaleiros errantes
assim como eu.

e, quando eu voltar às realidades daqui,
quero ser reconhecido
pela minha eloquência embandeirada
e pela alcunha de:
“poeta, o audaz”.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

PULSAÇÃO INTERIOR

 

Pulsação Interior

Sinto em mim um compasso demorado, não a pressa da superfície, mas a batida funda da terra.

Um ritmo lento, como as ondas quebrando na praia distante, um vai e vem constante, que escapa à pressa dos ponteiros.

Uma contração do eu, o recolhimento da energia, o silêncio que precede a palavra, o instante denso antes do florescer.

E então, a expansão sutil, o desabrochar lento da consciência, o preenchimento do espaço interno, a suave irradiação do ser.

Este pulsar íntimo, essa maré interna, não se apressa, não se força, apenas acontece, em sua cadência própria.

É o respirar da alma, o bater do coração da identidade, um ciclo constante de interiorização e manifestação.

Sinto este ritmo em cada célula, na quietude dos pensamentos, na profundidade das emoções, uma dança ancestral do ser que sou.

E nesta lenta pulsação, nesta sutil contração e expansão do eu, encontro a melodia fundamental da minha própria existência.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

RECOMEÇO EM TRÂNSITO

 

RECOMEÇO EM TRÂNSITO

fiquei ali
entre o motor desligado
e a vontade de desaparecer

a cidade não me esperava
as pessoas
atravessavam a rua como se soubessem
pra onde iam

eu, não.

havia uma pausa em mim
um semáforo interno piscando amarelo
há dias
me pedindo cautela
me impedindo o passo

pensei em você
e no tempo que pediu
como quem pede troco
e vai embora antes de receber

quis voltar pra casa
mas onde é isso
se a casa era você?

meus olhos seguiram a pressa dos outros
mas meus ombros afundaram no banco
como quem sabe
que certas dores
só aliviam quando
alguém volta.

e você não voltou.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

A MÁQUINA DA ESPERA

 

A Máquina da Espera

Já não se trata mais de "se",
mas de "como".
O tempo, que sempre foi prisão e mistério,
agora se oferece como trilha —
invisível, mas mapeada
pelas equações de quem ousa sonhar com o impossível.

Michio Kaku, com seus olhos de futuro,
diz que não é mais ficção:
é engenharia.
A mesma que nos levou ao céu,
que pousou o homem na lua,
agora sussurra ao ouvido dos séculos:
"prepara-te, relógio, tua prisão vai ruir."

Buracos de minhoca, campos quânticos,
curvas da relatividade —
são os novos ventos nas velas de um barco
que navega não no mar,
mas na própria estrutura do espaço.

Falta-nos energia, dizem.
Mas quando foi que a falta
impediu o voo?
Quando foi que o medo
venceu o fogo da invenção?

A viagem no tempo talvez ainda more
nos laboratórios do pensamento,
mas o tempo —
o próprio tempo —
já se pergunta
quanto falta
para ser atravessado
não por sonhos,
mas por passos.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

DEPOIS DA EUFORIA

 Depois da Euforia

O eco dos tambores ainda paira,
mesmo quando a praça já dorme.
Pisaram os confetes com pressa,
mas o vazio ficou de mãos dadas comigo.

As ruas gritavam cor, mas meus olhos,
abafados por tanta promessa,
viam apenas o chão —
molhado, brilhante de sobras.

Dancei com a multidão sem ser notado,
fui mais máscara do que rosto,
mais silêncio do que canto,
mais ausência do que desejo.

No rastro das serpentinas, busquei sentido,
mas só encontrei retalhos de mim mesmo
perdidos entre trios, brilhos e o som
de algo que prometia ser alegria.

E quando veio a quarta-feira,
não houve cinzas —
houve um espelho.
E nele, o meu cansaço vestido de festa.


Carnaval e o Sentido

O eco dos tambores atravessava os séculos,
como se a alegria pudesse justificar o tempo.
Mas eu, partícula hesitante da massa,
perguntava: quem sou entre mil rostos?

As serpentinas cortavam o céu como perguntas,
sutilezas coloridas num mundo que afunda.
O samba, tão vibrante, deslizava no asfalto,
mas em mim era abismo que não sabia dançar.

Entre máscaras sorridentes e passos precisos,
fui o intervalo, o sem-nome, o intervalo.
Porque quem grita com todos
é também quem escuta a si mesmo com medo.

A euforia dos outros me atravessou
sem jamais me pertencer.
O sentido escorregava como serpentina molhada
entre os dedos da consciência desperta.

E quando a quarta-feira chegou,
não foi fim, nem recomeço.
Foi só mais uma pergunta,
silenciosa e eterna:
vale mesmo a pena fugir de si
em nome de um instante brilhante?


Carnaval e o Sentido (continuação)

As ruas, tão cheias de passos e batuques,
ficaram desertas quando o som cessou.
Mas o vazio — esse não partiu.
Ele sentou-se ao meu lado, sem pedir licença.

Vi sorrisos sendo desfeitos no espelho do metrô,
fantasias esquecidas nos cantos da calçada,
e pensei: será que também eu fui inventado?
Será que minha alegria era só reflexo?

No fundo do peito, uma vontade de crer,
de que algo, talvez pequeno,
tivesse sido real naquela dança.
Mas o real é duro, e nem sempre dança.

E se a festa é um disfarce coletivo,
será a solidão o único nome sincero?
Ou será que no meio da multidão
a alma apenas cochila, à espera de um toque?

Porque o corpo pode pular, girar, cantar,
mas há perguntas que pulsam em silêncio:
Por que o riso exige tanto esforço?
E por que o silêncio é tão pesado depois?


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