terça-feira, 19 de dezembro de 2023

ANTROPOLOGIA URBANA

 

ANTROPOLOGIA URBANA

ela não anda —
declara a rua com os quadris
faz do salto
um hino de resistência estética

é pré-histórica e pós-futurista
na mesma passada

quem a viu sabe:
ela é tese e mito
é o elo entre o sagrado e o suspiro

nuvem de perfume e pulso
passando diante de prédios ocos
como se fossem ruínas de um mundo
que ainda não soube
como olhá-la direito.

domingo, 8 de outubro de 2023

HORIZONTE DE ESPERANÇA

 

Horizonte de Esperança

no fim do olhar cansado
uma luz se acende
sutil, insistente
promessa de manhã

é linha tênue
entre o hoje e o amanhã
onde o sonho se encontra
com a coragem de ser

não é fuga, nem ilusão
mas passo firme
sobre a areia movediça
dos dias difíceis

o horizonte sorri
mesmo quando escurece
e revela que sempre há
um motivo para seguir

pois onde há esperança
floresce a vida
e nasce um novo dia

terça-feira, 19 de setembro de 2023

GEOGRAFIA DO DESEJO

 

GEOGRAFIA DO DESEJO

há uma topografia secreta
no modo como teus lábios
cartografam minha pele

não é pressa —
é percurso.

as mãos, bússolas febris
desenham trilhas
onde antes só havia espera

teu hálito,
vento quente de monções
move cortinas internas
abre portos esquecidos

os músculos se lembram
da língua como seta
da saliva como selo

não há nome para o que se dá
sem pedir,
sem recuar —
mas sabemos.

os corpos, rios que se encontram,
perdem-se em curvas
em fundos não mapeados
em sinuosidades novas
onde o prazer não é fim
mas fenda,
criação,
caminho aberto.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

CORRENDO EM CÍRCULOS

 

 

Correndo em Círculos

 

O caminho se repete,

o mesmo passo, a mesma pedra,

embora o cenário mude

no labirinto da cabeça.

 

As ideias voltam,

ecos de ecos,

perguntas antigas

sempre à tona,

uma fita rebobinando

o que nunca teve fim.

 

É o tic-tac da dúvida

que não se cala,

o compasso do ser

preso em sua própria jaula

de vidro transparente,

onde a saída é sempre a entrada.

 

Canso de girar em torno do mesmo,

de buscar o nó

que desata a alma,

mas encontro apenas o começo

de um novo e idêntico amanhecer.

 

E neste eterno retorno,

a única certeza

é o movimento circular,

a infinita dança

que me leva de volta

ao ponto exato

onde nunca estive.

 


 

 

quarta-feira, 24 de maio de 2023

PALAVRA PRESA

 PALAVRA PRESA

 

Esse nó na garganta, apertado e cruel,

Sufoca a voz, a fala, o pensamento.

Um peso imenso, que se faz implacável,

Em silêncio rouba a paz e o contentamento.

 

A palavra presa, em vão tenta escapar,

Mas a angústia a prende, em sua teia escura.

Um turbilhão de emoções, que se amontoam,

E a alma se debate, em sofrimento puro.

 

Lágrimas contidas, um oceano calado,

Que inunda o peito, com sua dor profunda.

A solidão se instala, em seu reino sagrado,

 

E a esperança se esvai, como fumaça efêmera e munda.

Só resta a espera, paciente e sem alívio,

Que esse nó se desfaça, em suave derretimento

terça-feira, 23 de maio de 2023

NOJO

 

Nojo

Eu tenho nojo da fome
que grita no estômago das crianças
e é calada
pela indiferença.

nojo da corrupção
que veste terno
e come o pão
de quem não tem nome.

tenho nojo da desumanidade
que transforma gente
em estatística,
da violência cotidiana
que vira trilha sonora
de quem já nem reage.

tenho nojo —
mas não me calo.
o nojo é o grito
antes da ação,
é o enjoo de um mundo
que precisa nascer de novo.

meu nojo
não é repulsa
à dor do outro.
é repulsa
de viver num sistema
que a produz
e a lucra.

há um tipo de nojo
que desperta:
ele queima por dentro,
até virar verbo,
até virar
luta.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

FRAGMENTOS DE ESPELHO

 

Fragmentos de Espelho

Eu me olho
e não me vejo inteiro
apenas partes —
reflexos partidos
em molduras sem vidro

há um pedaço de mim
no riso que invento
outro
na dor que escondo

o espelho nunca mostra
a alma em voz alta
só fragmentos
como se a verdade
não coubesse de uma vez

sou um quebra-luz
feito de cacos que brilham
mais do que se fossem lisos

e às vezes entendo:
não preciso ser inteiro
pra ser sincero
nem simétrico
pra ser belo

sou feito de estilhaços
mas cada um deles
carrega um céu

sexta-feira, 19 de maio de 2023

SÓLIDA SOLIDÃO

 

SÓLIDA SOLIDÃO

meu quarto inerte me deixa só
e o frio (estúpido) se desprende da
vidraça fechada atrás das cortinas
de cetim amarelo-doentio

em meu peito meus braços me dizem
que já não suportam o vazio
que deixas quando não vejo nem toco
teus lábios

quisera poder sugá-los
por todos os ângulos
em todos os lugares:
em minha cama
no cinema
no drive-in
em qualquer parque onde brotam
as vincas
na rua
na dura realidade do dia-a-dia
até sentir que não
morrerei
na (não nessa) solidão


Revisão alternativa (mesma base, mais crua):

meu quarto é uma caixa de ausência
o frio atravessa a cortina
como se o cetim não bastasse

meus braços, cansados,
me imploram pele
em vez do eco

teus lábios:
onde ficam quando o mundo me pesa?
quisera lambê-los de volta à existência
no escuro,
no riso,
no lugar onde brotam vincas e vontades
na rua
na cama
entre a pipoca e o pânico cotidiano

só assim, talvez,
a solidão parasse
de virar rocha dentro de mim.

O VÔO II

 

O VÔO II

cheguei
sem saber se era certo
sem saber se ainda era hora

meu corpo
um corpo ausente de certezas
andava sozinho por esteiras e corredores
como se obedecesse a outra mente
(ou outro coração)

você não estava —
mas eu reconheci seu cheiro
nas árvores baixas da saída
e na moça do balcão
que me disse “bem-vindo”
com um sorriso parecido com o teu

por um instante
achei que te veria correr
com o cabelo amarrado
e uma mochila torta
dizendo “eu sabia que você vinha”

mas não veio

então esperei mais um pouco
como quem espera o amor
na segunda chamada de um vôo cancelado

e fui embora
sem mala
sem pressa
com o eco de tua voz em meu nome
Viny
só você me chama assim
e isso ainda dói.

terça-feira, 16 de maio de 2023

LÍNGUAS DE PEDRA

 

Línguas de Pedra

A terra respira. Não com pulmões de carne, mas com o lento inchaço de montanhas erguidas sobre milênios.

Sua voz não é som, não é palavra gritada no vento. É o peso da rocha, a ruga no flanco da colina, o granito calado na base do tempo.

A língua da pedra. Gravada em estratos, em fósseis que foram vida, em minerais que guardam a memória de fogos primordiais.

É a textura áspera sob a mão, o frio ancestral que emana do coração da montanha. Cada fissura, cada veia quartzo, uma sílaba esquecida, um verso petrificado.

E o silêncio. Ah, o silêncio da terra! Não o vazio, mas a plenitude que não precisa de som. O vasto deserto sob o sol impiedoso. A floresta densa antes do amanhecer. As cavernas escuras e profundas.

É o silêncio que precede a tempestade, o silêncio que guarda segredos de Eras Glaciais, de mares que secaram, de seres que andaram por aqui e se tornaram pó.

A terra fala em línguas de pedra, com a solidez imemorial que desafia nossa brevidade.

Fala em silêncio, com a quietude profunda que nos convida a ouvir além do barulho.

Basta parar. Sentir o chão sob os pés. Ver a montanha ao longe. Estar no vasto. E a terra, então, começa a contar sua história antiga, em sua própria e silenciosa linguagem.