segunda-feira, 5 de maio de 2025

DISTÂNCIA NÃO APAGA

 

distância não apaga

dizem por aí
que a distância apaga sentimento,
que o tempo arrasta tudo
pro fundo do mar da memória.

mas olha —
essa é uma das maiores mentiras da história.

porque a distância não apaga.
ela limpa.
ela decanta.
ela tira o barulho em volta
e deixa só o que é mesmo sentimento de verdade.

e aí, quando tudo silencia,
eu percebo:
o que já parecia grande
é maior que um gigante.

é presença que não precisa de presença.
é nome que ecoa mesmo quando ninguém chama.
é carinho que não precisa de motivo novo.
é amor que não entende de geografia.

o tempo passa,
a cidade muda,
a gente finge que esqueceu —
mas o coração tem jeito próprio
de guardar o que foi puro.

e por mais que o mundo repita
que a distância esfriou,
a verdade é que ela só me mostrou
que o teu lugar em mim
não era provisório.

era raiz.

DE FORA

De Fora

mesmo com vontade de comemorar o teu sucesso

e de te abraçar no final,

como quem torceu em silêncio desde o começo,
eu fico quieto.
parado no canto da plateia,
boca cheia de aplauso contido,
coração meio descompassado.

não é inveja,
nem amargura.
é só que
eu não me sinto parte.

não da festa,
nem da conquista,
nem do caminho até aqui.
parece que criei um enredo onde
minha cena foi cortada na edição final.

e tudo bem.
às vezes a gente ama de fora mesmo.
de longe.
com os olhos.
com uma prece baixa.

porque estar feliz por você
não apaga a ausência que ficou em mim.
mas acalma.

e talvez isso seja o que restou
— e talvez
seja o suficiente por hoje.

EU SEI

 eu sei.

isso é um problema meu,
inteiramente meu.
fui eu que li mapas onde você só rabiscou distraído,
fui eu que dei nome a ruas que não levavam a lugar nenhum.

então,
antes que o refrão recomece,
antes que a ponte musical me iluda de novo,
eu prefiro fugir no final da canção —
mesmo querendo ficar.

não por orgulho,
não por drama,
mas porque aprendi a não insistir em danças
onde só eu conheço os passos.

meu adeus vai ser baixo,
como quem sai de fininho
de uma festa onde ninguém notou que chegou.

e tudo bem.

no repeat da memória
vou lembrar mais do que foi bonito
do que do silêncio entre uma estrofe e outra.

porque, no fundo,
algumas canções são feitas pra tocar só uma vez.
e isso não tira delas a beleza
— só a ilusão de que durariam pra sempre.

TALVEZ EU ME DÊ UMA IMPORTÂNCIA

 

talvez eu me dê uma importância

talvez
eu me dê uma importância na sua área afetiva
que você nunca me deu.

talvez
eu more em um cômodo do seu coração
que nem existe.
talvez eu tenha inventado a chave,
a porta,
e até a planta da casa.

talvez
eu tenha lido sorrisos como sinais,
mensagens como promessas,
silêncios como espaço reservado.

no fundo,
talvez você só tenha me deixado passar,
como quem segura o elevador pra alguém estranho —
educado, mas sem destino comum.

talvez eu tenha feito altar
onde você só estendeu a toalha do café.
talvez eu tenha sonhado à beça
num campo onde você só encostou pra descansar.

e tudo bem.
não é erro seu.
não é maldade minha.
é só desencontro de sintonia —
a velha arte de supor reciprocidade
em ondas diferentes.

talvez eu me dê uma importância
que não tenho.
mas olha:
a minha parte foi sincera.
e às vezes, isso basta
pra seguir em paz.

A MAIS RARA E MAIS BELA DE TODAS

 

a mais rara e mais bela de todas

não era ouro,
nem glória,
nem o instante perfeito congelado em fotografia.

era outra coisa.
mais leve.
quase invisível.
feito respiração entre palavras.

talvez fosse o momento
em que duas mãos se tocam
sem saber direito por quê.

ou o silêncio
que não pesa —
só acolhe.

era o não dito
que ainda assim dizia.
a lágrima que caía
sem vergonha nenhuma.

era quando a dor se sentava
ao lado da esperança
e as duas assistiam
ao mesmo pôr do sol.

não brilhava,
mas acendia por dentro.
não doía,
mas também não fingia.

a mais rara e mais bela de todas
não se posta,
não se vende,
não se ensina.

só se vive.
por segundos.
por dentro.
e depois,
fica.

domingo, 4 de maio de 2025

FÉ NO VERMELHO

 fé no vermelho

e se a fé oscilar no vermelho,
igual tanque de carro velho
na subida?

e se não tiver reserva
nem ombro nem luz de advertência,
só um silêncio miúdo
dizendo: “não sei mais”?

fé também falha.
às vezes escapa
pelos cantos da dúvida,
às vezes cansa
de carregar esperança sozinha.

e se eu não acreditar hoje?
se eu não enxergar saída
nem sentido
nem ciclo?

será que a fé aceita
ser deixada em repouso?
aceita ser ferida,
despida das frases prontas?

porque tem dias em que tudo
parece sem Deus,
sem beleza,
sem começo.

mas no escuro mais escuro,
quando nem meu nome me responde,
se acende uma faísca:
pequena, torta,
mas minha.

talvez fé seja isso —
não certeza,
mas teimosia.
uma coragem de seguir
mesmo com o tanque no fim
.

AINDA TÔ AQUI

 ainda tô aqui

não me engoli inteiro
nem virei a máquina
que esperavam.

não fui eficiente todos os dias,
nem feliz com consistência.
mas —
ainda tô aqui.

com as rachaduras,
com os atrasos,
com a fé oscilando no vermelho.

ainda tô aqui
mesmo quando a voz falha,
quando a esperança escapa por baixo da porta
feito corrente de ar.

às vezes sumo de mim,
mas volto.
mais lento, mais tonto,
mais verdadeiro também.

porque estar
é um ato de resistência.
e eu, do meu jeito
desajeitado,
continuo.

não conquistei o mundo,
não venci todas as dúvidas.
mas sigo com as mãos abertas,
esperando que a vida
ainda me reconheça como casa.

ainda tô aqui —
e isso
já é poesia.

E SE O CHORO VIER?

e se o choro vier?

e se o choro vier
no meio da reunião,
entre um “tudo certo” e um “vamos avançar”?

se ele invadir o script,
feito erro de sistema,
vazando pelos olhos
que tentaram manter a compostura?

e se ele vier
sem motivo específico,
sem trilha sonora,
sem poesia que justifique?

e se for feio,
com soluço,
com vergonha,
com dor acumulada
de três anos atrás?

será que vão me pedir pra desligar a câmera?
mandar respirar fundo?
sugerir que eu volte depois do intervalo?

ou será que alguém vai reconhecer
o gesto do corpo que não aguenta mais?
vai entender que o choro, às vezes,
é o primeiro sinal
de que a alma ainda está tentando?

e se o choro vier,
que venha.
com força,
com tudo.

porque há dias em que chorar
é a forma mais honesta
de dizer:
“ainda tô aqui.”

E SE EU ME ATRASAR DOIS MINUTOS?

 e se eu me atrasar dois minutos?

e se eu me atrasar dois minutos,
o mundo continua girando?
a cidade implode?
alguém desiste de mim?

ou talvez —
só talvez —
esses dois minutos sejam meus
pela primeira vez.

dois minutos pra respirar sem meta,
pra não responder,
pra olhar pro teto
e não chamar de perda.

e se nesses dois minutos
eu lembrar o nome do que sinto?
se o choro vier
sem legenda,
sem trilha de stories,
e for sincero demais
pra caber no horário comercial?

e se eu me atrasar dois minutos
e descobrir que a vida esperaria?
que ninguém morre por um atraso,
mas às vezes morre
por nunca parar?

dois minutos.
não peço mais.
só isso:
um pequeno desvio
no mapa desenfreado,
pra lembrar
que o tempo
ainda pode ser meu.

URGÊNCIA NENHUMA

 urgência nenhuma

acordo com pressa
antes mesmo do despertador.
meu corpo já corre,
meu peito já pesa,
mesmo sem compromisso marcado.

é como se a vida exigisse velocidade
pra não perceber o vazio.
como se parar fosse
pecado moderno.

faço tudo rápido:
o café, o scroll, a resposta.
não dou tempo pras perguntas
que moram nos intervalos.

e essa urgência —
essa urgência nenhuma —
me empurra como se o mundo
fosse desabar se eu atrasar dois minutos.

mas desaba é por dentro.
a cada corrida sem motivo,
a cada meta que não faz sentido,
algo em mim se cala.

talvez eu esteja viciado
em não sentir.
porque sentir leva tempo,
e o tempo foi sequestrado
por uma pressa que não é minha.

no fim do dia,
tô exausto
de ter ido
a lugar nenhum.