domingo, 4 de maio de 2025

MEUS BRINQUEDOS AINDA ESTÃO LÁ

 

meus brinquedos ainda estão lá

lembro de um quarto pequeno
com um abajur torto
e brinquedos desalinhados como eu.
ninguém me ensinou a brincar acompanhado.

o tempo era um bicho manso,
me olhava pelos cantos
enquanto eu montava mundos
com pedaços de silêncio.

cresci com essa voz interna
que sempre sussurra
quando tudo se cala.
ela veio comigo —
não cresceu,
só ficou mais quieta.

hoje ando por ruas largas
com o mesmo vazio do tapete azul,
e às vezes acho que a solidão
não começou agora —
ela só foi ganhando nome,
senha,
roupa de adulto.

meus brinquedos ainda estão lá,
em alguma gaveta do tempo,
esperando que eu volte
pra reaprender a companhia
sem pressa,
sem rede,
sem medo de estar só.

CORAÇÃO MODO AVIÃO

 coração modo avião

às vezes a solidão
não é ausência de gente,
é excesso de mim.
um eco que se cansa da própria voz.

me sento no chão da sala
sem propósito,
como se o chão fosse mais honesto
do que qualquer cadeira ergonômica.

o mundo lá fora gira
com seus algoritmos precisos,
e aqui dentro
eu travo.

não por falta de wi-fi,
mas por falta de toque.
nenhuma chamada perdida,
nenhuma presença achada.

penso em mandar mensagem,
mas o que se diz quando não se sabe
nem o que se sente?

então silencio tudo.
desligo o olhar.
deixo o coração no modo avião
pra ver se ele aterrissa em algum lugar.

ENTRE PARÊNTESES

 entre parênteses

ninguém mais bate à porta.
só notificações.
o mundo virou um lugar
onde a presença se mede por status online.

minha solidão
não é romântica,
não tem vinho,
nem chuva na janela.

é seca,
com luz de LED e micro-ondas,
com eco no pensamento
e ausência até no espelho.

me acostumei com a antítese modorrenta
de estar cercado e só —
abraços virtuais,
silêncios que digitam “...” e depois somem.

às vezes falo alto
pra ter certeza de que existo,
mas a casa não responde,
só respira, indiferente.

solidão assim nem dói direito.
é só uma espera morna,
uma presença ausente
que senta comigo no sofá
e muda de canal sem avisar.

MODO ECONOMIA DE ALMA

 

modo economia de alma

respondo com "haha"
pra não ter que explicar o cansaço.
marco presença onde meu corpo vai,
mas minha alma entra no modo economia.

o toque virou emoji,
o afeto, uma figurinha repetida.
ninguém mais pergunta "tudo bem?"
pra escutar de verdade.

às vezes quero sumir da própria cabeça,
fingir que não tô em mim,
ver se assim sobra espaço
pra existir sem manual.

a antítese modorrenta me ronda:
quero sentir tudo e nada,
quero o caos e o silêncio,
quero fugir sem sair de casa.

então silencio o celular
e espero que a vida
me mande uma notificação
com algum sentido.

NOTIFICAÇÕES EM SILÊNCIO

 notificações em silêncio

acordei com a sensação
de que algo não começou.
ou começou errado.
ou sou eu que ainda estou no rascunho.

a cidade vibra no modo avião,
gente andando depressa pra lugar nenhum,
com olhos que deslizam na superfície das coisas.
como quem aceita o contrato sem ler.

penso demais e ajo de menos.
é a antítese modorrenta da minha era:
urgência e apatia
num feed que nunca dorme.

entre um café morno e uma meta não batida,
me pergunto:
quando foi que desaprendemos a pausa?
o afeto com acento,
o toque sem atalho?

queria me desligar sem morrer,
desaparecer só pra ver
quem ainda sentiria falta
de alguém que nunca esteve todo.



ANTÍTESE MODORRENTA

 Antítese Modorrenta

No vão da tarde entediada,
quando o sol boceja preguiça,
dança lenta a ideia alada
com a razão que nunca se atiça.

É quando o verbo se contradiz
sem pressa, sem convicção —
uma briga que pede bis
no silêncio da contramão.

Antítese modorrenta,
palavra que se espreguiça,
que vive entre o sim e o não
sem querer tomar notícia.

O claro flerta o escuro,
o grito se deita no sussurro,
e o tempo, meio surdo,
esquece o próprio curso.

Nessa rima meio morta,
nessa lógica sonolenta,
tudo é tudo e nada importa
na antítese modorrenta.

POESIA SUAVE PARA NOSSA AMIZADE

 Poesia suave para nossa amizade

era como uma liturgia,
onde o tempo se aquieta,
e o silêncio se torna melodia.

Cada palavra, um toque leve,
nos gestos trocados, sem pressa,
um canto sem necessidade de ser ouvido,
mas que se faz presente em cada presença.

Era o rito do olhar que se entende
sem palavras, um encontro profundo,
como se estivéssemos em um templo secreto
onde o mais simples gesto se tornava profundo.

A amizade, assim, era oração sem fim,
onde o sagrado não precisava ser dito,
mas vivido, em cada silêncio compartilhado,
em cada risada que se transformava em canção.

E eu sabia que, mesmo nos dias cinzentos,
nossa liturgia seria refúgio,
como a suave brisa que toca o rosto
e nos faz sentir o coração mais sereno

CUPINS, LAMBARIS E A COBRA

 Cupins, Lambaris e a Cobra

Quando eu era criança
morava onde o mato tem cheiro de vento
e o tempo, cor de ferrugem.

Eu e meu irmão —
esse que o tempo levou antes que eu quisesse —
caminhávamos juntos pelos campos
à procura de cupinzeiros,
maciços de terra
onde a infância cavava o mundo.

Rasgávamos o barro com enxadas
para colher iscas vivas,
cupins miúdos
que depois virariam movimento na água,
anzol no córrego,
pequena alegria na ponta da linha.

Um dia,
a terra respirou mais fundo.
E do ventre seco de um cupinzeiro antigo
surgiu uma cobra.

Não era venenosa —
mas não sabíamos.
Não soubemos.

O susto falou por nós,
e nossas mãos de meninos
golpearam o que parecia ameaça.

A cobra morreu ali.
Dentro da própria casa,
sem entender o motivo,
sem ter a chance
de se recolher.

Hoje,
setenta anos depois,
aquela terra ainda me pesa nas mãos.
A cobra às vezes me olha
dos cantos da memória,
sem raiva —
mas com um silêncio
que me atravessa.

Não foi crueldade,
foi ignorância.
Mas a vida que se perde sem razão
grita,
mesmo no mais fundo arrependimento.

E é por isso que volto,
em sonho,
ao cupinzeiro quebrado,
não para caçar,
mas para pedir perdão
àquilo que jamais quis ferir.

O QUE É VERDADE

 O Que É Verdade

Porque tudo que é verdade
resistirá sempre às trevas —
não por força,
mas por raiz.

Mesmo quando soterrada,
ela respira por baixo
como semente paciente,
esperando o instante certo
de romper o chão.

A verdade não se apressa.
Ela aguenta o esquecimento,
o escárnio,
os gritos falsos
que tentam abafá-la.

Mas um dia,
ela cresce.

E alcança
o mais alto pedestal —
não para se exibir,
mas para iluminar
o que estava oculto.

E ali permanece,
não como troféu,
mas como farol:
silenciosa,
intocável,
inteira.

DEBAIXO DA PELE

 Debaixo da Pele

E a imensa delicadeza
se escondia por debaixo da pele —
quieta, como segredo de criança,
como flor que teme o vento.

Não queria ser notada,
não queria virar explicação.
Só desejava continuar sendo
instantes felizes,
daqueles que chegam sem aviso
e partem sem culpa.

Viviam ali:
no arrepio sutil,
no riso que quase não nasce,
na lágrima que não escorre.

Era o dom de sentir
sem fazer barulho.
De caber em silêncios,
em pequenos gestos
que o mundo costuma esquecer.

E mesmo escondida,
ela brilhava —
porque tudo que é verdade
sempre encontra um modo
de ser luz,
mesmo por dentro da pele.