domingo, 4 de maio de 2025

SEM TRILHO

 sem trilho

o mundo anda numa pressa desenfreada,
como se a vida tivesse hora marcada
pra acontecer.

eu, não.
ando em compassos quebrados,
num ritmo que ninguém toca mais.
sou o silêncio
entre dois alertas.

enquanto tudo gira,
fico parado no centro do redemoinho,
tentando lembrar
se era mesmo urgente viver assim.

há uma beleza
na espera que ninguém entende,
na pausa que não é preguiça,
mas escuta.

mas o mundo não ouve.
ele cobra, exige, notifica,
e eu me vejo de novo
atrasado,
remando contra uma maré
que não pede licença.

é essa antítese modorrenta que me define:
sou calmo por dentro
e inquieto por cobrança,
sou presente ausente
num tempo que não aceita
meu jeito de ser.

e sigo,
mesmo sem trilho,
procurando um lugar
onde a pressa
não precise de mim.

FUSO INTERNO

 fuso interno

tô sempre um passo atrás
do que eu mesmo sinto.
quando percebo a alegria,
ela já empalideceu.
quando o choro vem,
não sei mais o motivo.

meus relógios não batem com o mundo.
vivo num fuso interno
onde tudo acontece depois.
ou quase.

os outros andam em linha reta,
eu desvio.
não por estilo —
por atraso mesmo.

é difícil explicar esse tempo meu:
uma lentidão que cansa,
um cansaço que acelera.
uma antítese modorrenta
entre a urgência do mundo
e a hesitação do peito.

fico nessa marcha lenta
dentro de um mundo rápido,
pedindo licença pra sentir,
quando tudo exige reação.

e sigo.
às vezes na contramão,
às vezes parado.
mas sempre tentando alcançar
o que em mim
sempre chega depois.

VOLTAR PRA DENTRO (Letra de Música)

 

Voltar pra Dentro
(Letra de música)

[Verso 1]
Ouvi tanta gente,
que esqueci minha voz.
Fiquei bom em caber,
em não ser demais pra nós.
Mas agora eu ando buscando
a parte que ficou pra trás,
um pedaço do silêncio
que eu calei tempo demais.

[Pré-refrão]
E eu me sento, devagar,
pra ouvir o que restou.
Entre o ruído e a pressa,
o que é que ainda sou?

[Refrão]
Voltar pra dentro
sem mapa, sem hora.
Reabrir as caixas
que deixei lá fora.
Vontade ou expectativa?
Quem foi que escolheu?
Tô tentando lembrar
como é ser só eu.

[Verso 2]
Tem medo guardado,
tem carta sem fim.
Tem coisa que eu fingi que não era de mim.
Mas agora não fujo,
não mudo o canal.
Ficar comigo mesmo
deixou de ser sinal de mal.

[Pré-refrão]
E eu me escuto, enfim,
sem ter que traduzir.
Se for pra me perder,
que seja pra me descobrir.

[Refrão]
Voltar pra dentro
sem mapa, sem hora.
Reabrir as caixas
que deixei lá fora.
Vontade ou expectativa?
Quem foi que escolheu?
Tô tentando lembrar
como é ser só eu.

[Ponte]
Sem feed, sem filtro,
sem medo de ser.
O que sobra em mim
quando eu paro de correr?

[Refrão final]
Voltar pra dentro
sem mapa, sem pressa.
Talvez o silêncio
seja minha promessa.
Entre o que esperam
e o que sou de fato,
a minha voz sussurra:
“vem, que ainda dá tempo exato.”

VOLTAR PRA DENTRO

 voltar pra dentro

ouvi tanta gente,
tanta opinião,
que minha própria voz
começou a sussurrar.

fiquei bom em agradar,
em fazer caber,
em não atrapalhar o clima.
mas ruim de me escutar.

me perdi entre conselhos,
feeds, filtros, fórmulas,
e agora ando reaprendendo
a diferença entre vontade
e expectativa.

às vezes tento ficar em silêncio
pra ouvir o que sobra.
mas o silêncio também assusta —
parece que ele sabe coisas
que eu andei evitando.

voltar pra dentro
é como reabrir um quarto antigo
cheio de caixas com meu nome.
algumas ainda fedem a medo,
outras têm cartas que nunca enviei.

fico ali,
sem pressa dessa vez,
tentando lembrar
como era estar comigo
sem precisar me traduzir.

cheguei depois (Atrasado de Mim Mesmo)

 cheguei depois

ando tão rápido
que me perco de mim.
me deixo pra trás
em versões que não consegui alcançar.

chego nos lugares
antes do pensamento,
falo coisas que meu coração
ainda nem processou.

vivo numa corrida onde
a linha de chegada é sempre
uma versão futura
de quem eu deveria ser.

e mesmo quando paro,
não descanso —
fico ouvindo o eco
do que não fui.

me atraso pra mim
todos os dias.
chego depois da vontade,
depois da sensibilidade,
depois do sentido.

no fim, me abraço como quem pede desculpa
por não ter esperado.
mas eu também tô cansado
de correr atrás de mim mesmo.

CORRENDO PARADO (A pressa Como Sintoma de Desconexão)

 correndo parado

tô sempre com pressa.
não sei de quê.
me atraso pra tudo,
até pros silêncios.

respondo mensagem sem ler,
ando rápido sem destino,
acelero o pensamento
pra não encarar o que sobra.

o tempo virou um bicho nervoso
correndo em círculos
no peito.
e eu alimento ele com tarefas,
como quem doma a ansiedade
com produtividade.

mas chega a noite
e tudo volta:
a sensação de ter feito demais
sem ter vivido nada.

não é cansaço.
é outra coisa.
um tipo de ruído
que mora dentro
e disfarça o vazio
com barulho de agenda cheia.

INFINITO MENU

 

infinito menu

tenho mil opções
e nenhuma fome.

abro o aplicativo,
deslizo, escolho, cancelo.
repito.

a liberdade pesa
quando tudo parece possível
e nada parece certo.

o mundo me oferece caminhos
com algoritmos sorridentes,
mas cada decisão
é uma perda disfarçada.

fico parado,
não por falta de vontade,
mas por excesso de portas
sem chão visível atrás.

às vezes invejo o concreto,
o definitivo,
o que não dá pra desfazer com um swipe.

me sento no sofá
com a televisão ligada
só pra ter a sensação
de que algo está andando.

mas não sou eu.

SEGUNDA ABA

 

segunda aba

vivo como quem deixa a vida
aberta numa aba secundária.
não fecho,
mas também não clico.

estou aqui,
mas de fone.
respondendo com gestos mínimos
pra não ser confundido com ausência.

meus dias passam como comerciais
que não prestei atenção.
às vezes me pego existindo
no automático —
modo silencioso da alma.

tenho medo de que
me acostumar com isso
seja pior que a dor.

a vida vai acumulando poeira
num canto da consciência
e só percebo
quando tropeço
no próprio vazio.

SEM ESPANTO

 

sem espanto

na ausência de espanto,
as manhãs se repetem
como senhas digitadas sem pensar.
o sol entra pela janela
não como revelação,
mas como rotina.
luz que cumpre horário.

levanto, escovo, visto, ando.
não sinto — executo.
me tornei um script,
um conjunto de comandos
rodando em segundo plano.

quando tudo vira protocolo,
até o afeto perde o cheiro.
abraços são cumprimentos,
olhares são confirmações de leitura.
ninguém mais se pergunta o porquê,
só o quando.

e nessa vida enxugada,
onde até a tristeza tem etiquetas,
fico esperando o acaso —
um tropeço na lógica,
um erro do sistema
que me lembre
como era
sentir sem manual.

GENTE QUE NÃO CHEGOU

 gente que não chegou

de manhã, abro a janela
como quem espera alguém.
mas nunca tem ninguém.
nem mesmo eu, às vezes.

o espelho já não me reconhece tão rápido.
me olha com dúvida,
como se dissesse:
"você de novo?"

passo o dia entre tarefas automáticas,
potes que guardam sobras,
emails que começam com “espero que esteja bem”
e ninguém quer saber se estou.

há um tipo de solidão que mora
na ausência de espanto.
quando tudo vira protocolo,
e até o choro tem horário pra acontecer.

ando pela casa
como se esperasse uma visita —
uma versão de mim
que talvez tenha se perdido pelo caminho.

e toda noite,
deito do lado esquerdo da cama
deixando espaço
pra gente que não chegou.