domingo, 4 de maio de 2025

O LUGAR ONDE A ALMA NÃO SE CURVA

 O Lugar Onde a Alma Não se Curva

Dizem que no fim da Travessia do Vento,
depois da última torre que nunca lança sombra,
existe um ponto suspenso —
invisível aos olhos que temem.

Ali,
a alma deixa de se curvar.
É um lugar sem chão,
mas também sem queda.
Uma dobra no tempo onde tudo o que já foi dor
vira linguagem antiga
e o corpo aprende a caminhar
sem precisar se ajoelhar.

Chegam ali os que foram partidos,
os que amaram até virar pedra,
os que carregaram séculos nos ombros
sem nunca entender de onde vinham os pesos.

No instante em que pisam esse ponto —
feito de luz esquecida —
algo acontece:
as promessas não cumpridas se desfazem,
os nomes antigos perdem som,
e o olhar reencontra sua origem.

Nenhum mapa leva até lá.
Só se chega quando se perde o último medo
de não ser aceito por ninguém.

E então, no silêncio que vem,
a alma se ergue.
Não por orgulho,
mas porque se lembrou
de que foi feita para voar.

ZERO

 

Zero

A tolerância será sempre igual a zero —
não por falta de amor,
mas por excesso de verdade.

Há um ponto em que a alma
não se curva mais.
Não por orgulho,
mas por ter entendido
que o chão também cansa
de ser pisado.

Ser tolerante é, às vezes,
abrir portas demais
e esquecer de fechar as próprias janelas.

E então o vento entra.
E leva o que era abrigo.

Aprendi:
há coisas que não merecem mais espaço,
nem mais desculpas,
nem mais esperas.

Porque o respeito não se pede,
se percebe.
E o silêncio —
quando vem depois de muito ruído —
é uma espécie de justiça.

Sim,
a tolerância será sempre igual a zero
quando a dignidade
for menor que o medo.

O BELO SEM MOLDURA

 O Belo Sem Moldura

Como explicar
o belo que não precisa de moldura,
se o cuidado se dissolve
na ignorância das coisas simples?

O botão que desabrocha
sem testemunhas,
a gota que insiste em cair
de um galho esquecido —
são mais belos
justamente porque não pedem olhos.

Há beleza no que escapa,
no que não se entende,
no que vive sem saber
que está sendo visto.

Mas o gesto de moldurar,
de preservar com zelo,
é também uma forma de amar —
mesmo que falhe,
mesmo que a beleza fuja
no instante seguinte.

Talvez o segredo
seja aceitar:
há beleza que só existe
enquanto passa,
e cuidado que não salva,
mas toca.

E isso, no fundo,
já basta.

AS GALINHAS NO QUINTAL

 

As Galinhas no Quintal

No meu quintal
as galinhas teimavam
em pastar a grama bem cuidada.

Não sabiam das regras,
nem do esforço que é manter
o verde aparado,
a ordem dos canteiros,
o capricho invisível das manhãs.

Elas apenas bicavam —
livres,
descabeladas,
em sua própria lógica
de procurar o mundo com o bico.

E havia algo nisso
que me espantava e encantava:
a maneira como ignoravam
o que eu chamava de controle,
e insistiam em viver
sem roteiro.

Naquela desordem alada,
com seus passos descompromissados,
me ensinavam algo
sobre o cuidado que se dissolve,
sobre o belo que não precisa de moldura,
sobre a liberdade de não entender.

EU NÃO ESTAVA ALI

 Eu Não Estava Ali

Nem eu mesmo percebi
que eu não estava ali.
Respirava, sim —
mas era o mundo que respirava por mim.

Passei por mim como se passa
por uma porta fechada,
sem sequer tentar a maçaneta.

Não me encontrei.
Não me chamei.
Não sentei comigo à mesa
nem perguntei se havia fome.

Não houve conversa,
nem escuta.
Apenas ruído,
como um rádio esquecido num quarto vazio.

E então doeu —
doeu o que não foi dito,
o que não fui.

E percebi que o que eu queria,
mais do que qualquer resposta,
era me ouvir.
Só isso.
Me ouvir, enfim,
sem me interromper.

PROSOPOPEIA MAIS DELICADA

 A Prosopopeia Mais Delicada

A minha prosopopeia mais delicada
não gritou —
sussurrou entre galhos de silêncio
o que o medo não quis ouvir.

Descobriu, com a ponta dos dedos,
que o nada
mora no começo do que sou,
feito nascente tímida
em terreno esquecido.

Ali, onde nem eu ousava entrar,
ela encontrou
um fio de luz
passando por entre os vãos
da incredulidade.

E disse, com doçura:
"É aqui que começa."

Perto das vertentes
que eu mesmo sugeri
ao incrédulo que habita em mim,
ela desenhou um mapa
feito de ausência,
e me ensinou a caminhar
sobre o que não sei.

PERTO DO NADA

 Perto do Nada

Entrei e saí
por vários caminhos
que diziam meu nome
sem me reconhecer.

Dobrei esquinas do tempo,
pisei em passos antigos,
procurei vestígios de mim
em rostos que não eram espelhos.

E de tanto não me encontrar,
reparei:
estava em lugar algum.

Um quase-lugar,
feito de neblina e lembrança,
onde os muros não se firmam
e as portas não sabem fechar.

Ali,
onde o silêncio se alonga
como sombra sem dono,
descobri que o mais próximo de mim
era o nada.

E que talvez —
só talvez —
nesse nada morasse o começo
do que sou
sem saber.

QUANDO O CORPO SILENCIA

 

Quando o Corpo Silencia

Mas se o corpo silenciar-se —
de verdade,
como quem adormece sem medo,
como quem pousa a última palavra
num chão que não exige resposta —
a alma certamente escutará.

Escutará o que vem de longe,
de antes,
de dentro,
como uma água subterrânea
que sempre esteve ali.

O som não é som.
É presença.
É vento que atravessa sem tocar,
mas deixa tudo diferente depois.

O corpo se cala
e então, por um instante,
tudo que era peso se desfaz em escuta.

E o que era ausência
revela sua voz.

ENTRE UMA RESPIRAÇÃO E OUTRA

 

Entre Uma Respiração e Outra

À beira dos ossos
tudo é quase —
quase gesto, quase voz,
quase lembrança que se esquece sozinha.

Entre uma respiração e outra,
mora um intervalo que ninguém vê:
um lugar suspenso
onde o corpo silencia
e a alma escuta.

Ali,
sou só sopro antigo,
vaga ideia de mim
desenhada na poeira do instante.

Não há palavras.
Só o rumor do que seria
caso eu não voltasse.

É nesse fio de ar,
nesse quase-nada que respiro,
que descubro
o que me sustenta.

E não é músculo.
Nem certeza.
É só o mistério
de continuar sendo
sem saber como.

ECO DE ALGO QUE NUNCA VIVI

 Eco de Algo que Nunca Vivi

Eco de Algo que Nunca Vivi

Preciso me esvaziar —
como jarro deixado ao relento,
como rua depois da chuva
quando ninguém mais passa.

Me perder do tempo,
desatar os minutos do pulso,
deixar que o dia me esqueça
como se eu nunca tivesse sido.

Quero virar eco
de algo que nunca vivi,
mas que me sonda —
como se soubesse de mim
mais do que eu.

Talvez um gesto não dado,
uma memória que errou de corpo,
um silêncio que não era meu
e me escolheu.

Sinto-o à beira dos ossos,
entre uma respiração e outra,
quando o mundo cochila
e tudo parece voltar a antes.

Mas não há antes.
Só o agora vazio,
à espera de um nome
que ainda não sei pronunciar.