terça-feira, 6 de maio de 2025

HORIZONTES FECHADOS - PARTE V

 

Horizontes Fechados — Parte V
Portas Invisíveis

Atravessou.
Mas não como se atravessa um limiar —
não houve passo,
não houve som.

Foi um deslizamento sutil,
como o pensamento que se reconhece verdade,
ou o instante em que o medo se cala.

Era uma porta sem bordas,
sem madeira,
sem tranca.
Feita do exato momento em que deixou de buscar.

Do outro lado,
não havia paisagem nova.
Era o mesmo mundo —
mas inteiro.

As folhas tremiam diferente.
O céu respirava mais perto.
Até as pedras pareciam ter algo a dizer.

E o mais estranho:
ninguém notou que ele havia cruzado.
Pois quem vê com olhos não sabidos
torna-se invisível aos que só enxergam com pressa.

Lá,
na quietude do que se abriu sem esforço,
descobriu que atravessar
nunca foi sair —
foi permitir que o dentro
encontrasse o fora.

E onde antes havia um horizonte fechado,
agora havia espaço.
Um espaço tão simples
que só podia ser infinito.

HORIZONTES FECHADOS - PARTE VI

 

Horizontes Fechados — Parte VI
O Espaço Que Ouve

No espaço que não dizia nada,
ele sentiu-se ouvido pela primeira vez.
Não julgado,
não moldado —
apenas escutado em silêncio absoluto.

Era como se o mundo,
agora permeável,
o deixasse existir sem medida.
Sem moldura,
sem fim.

E quanto mais não fazia,
mais o espaço respondia.

A própria quietude do lugar
era uma linguagem que o tocava por dentro,
desfazendo ruídos antigos,
reabrindo passagens que o medo calou.

Ali, percebeu:
não era ele quem caminhava.
Era o espaço que se abria sob seus passos.
Cada gesto pequeno —
um portal.
Cada pausa —
um retorno ao que sempre esteve.

Começou a andar
como quem não carrega o corpo.
Como se fosse feito da própria escuta,
como se o ar já soubesse seu nome antes dele pronunciar.

E enfim compreendeu:
o caminho não levava a um lugar.
O caminho era um estado.
Era ser.

HORIZONTES FECHADOS - PARTE VII

 

Horizontes Fechados — Parte VII
O Retorno Invisível

Voltou.

Não por saudade,
mas porque entendeu
que o que aprende a ver
precisa, um dia, também ensinar a enxergar.

As mesmas ruas,
os mesmos rostos,
as mesmas ausências que antes gritavam —
agora silenciavam de outro modo.

Ele andava entre os outros
como sombra que carrega luz.
Falava pouco,
mas sua presença contava histórias
que ninguém sabia ter ouvido.

Tentou abrir, com gestos,
as portas que ainda viam trancas.
Tentou mostrar, com o silêncio,
que alguns muros só existem
para que aprendamos a atravessá-los por dentro.

Mas percebeu que há olhos que ainda dormem.
E que não se deve forçar o despertar.

Então, tornou-se brisa.
Tornou-se pausa entre palavras.
Tornou-se aquilo que, ao passar,
não deixa marca — mas deixa espaço.

E assim vive,
sem sair nem chegar,
dentro do mundo que o rejeitou,
mas que agora carrega dentro de si.

Pois quem atravessou o invisível
sabe:
nada mais é fechado,
nem mesmo o que parece ser.

HORIZONTES FECHADOS - EPÍLOGO

 Horizontes Fechados — Epílogo

Aquele que se tornou passagem

Ninguém viu quando ele partiu.
Ninguém notou quando voltou.

Mas algo, em cada coisa,
tornou-se mais leve.

A chuva hesitou ao tocar o chão.
As palavras buscaram menos pressa.
Até o tempo, esse velho carrasco,
parecia pisar com mais cuidado.

Pois havia no ar um vestígio:
não de presença,
mas de caminho aberto onde antes era pedra.

Alguns dizem que ele virou vento.
Outros, que ainda caminha —
em silêncio,
entre perguntas que ninguém ousa fazer.

Mas quem já sentiu,
mesmo por um segundo,
aquele espaço sem paredes,
aquele olhar que vê sem querer,
sabe:

ele não era alguém.
Era uma abertura.

Um rasgo manso
no tecido do impossível.

E quem o encontra,
não o encontra.
Apenas se lembra
de que também é chave.
De que também é porta.
De que também, um dia,
poderá ver com os olhos
que ainda não sabe usar.

O GRITO SEM ROSTO

 

O Grito Sem Rosto

No centro do silêncio havia um som —
mas ninguém o ouvia.
Era um grito que não buscava ouvidos,
mas espelhos.
E nem mesmo o vazio o devolveu.

Era meu.
Era teu.
Era o grito que nunca encontrou o seu próprio eco.

Solto em um mundo de superfícies surdas,
ele vagou como névoa em pedra,
como sombra num campo sem luz.

Chamava por si mesmo —
e nem assim se reconhecia.

Esse grito sabia demais:
sabia que há dores que nascem mudas,
e palavras que, ao serem ditas,
se perdem para sempre.

Ele esperava uma caverna viva,
uma alma côncava o bastante
para lhe dar forma de volta.

Mas encontrou apenas horizontes fechados,
portas que sorriam… e não se abriam.

Ainda assim, ele persiste,
como vento que se finge esquecimento.
E às vezes, no meio da noite,
tu o sentes atrás da tua pele —
sem som,
sem nome,
sem lugar para morrer.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

ESCRITA VIVA

𝘦𝘴𝘤𝘳𝘪𝘵𝘢 𝘷𝘪𝘷𝘢

aí que estoy aqui
(querendo você, sim, ainda)
mas mais do que isso,
querendo viver essa página
com a letra da minha mão.

tem um sabor bom
em protagonizar a própria cena,
respirar fundo e dizer:
“essa linha fui eu que escrevi.”
sem rascunho, sem dublê,
com erro, acerto,
e um certo charme nos desvios.

mas também percebo:
nem tudo é tinta minha.
às vezes é a vida que pega a caneta
e me rabisca de um jeito
que só depois eu entendo.

no fim, é parceria:
um pouco eu que invento,
um tanto ela que me revela.
tem dias que sou autor,
tem dias que sou personagem,
e às vezes sou só uma frase
que ela decidiu guardar.

e tudo bem.
porque se a história me escreve,
é porque ainda estou sendo lido
pelas horas, pelos ventos,
pelo amor que ainda atravessa
essas páginas vivas.

O AGORA SE FOI

 𝘰 𝘢𝘨𝘰𝘳𝘢 𝘦𝘴𝘤𝘰𝘳𝘳𝘦

escrevi sobre o agora.
foi tudo de sopetão,
como se o texto me atravessasse
mais do que eu o escrevesse.

assim que a última palavra caiu,
alguém me chamou.
e eu fui.
deixei as palavras ali, soltas,
sem carinho nem backup.
não houve adeus,
só pressa.

quando voltei,
o computador dormia —
e com ele,
meu agora.

não chorei.
não culpei a máquina.
fui eu quem virei as costas.
fui eu quem largou
o instante quente
ainda pulsando.

e agora —
tento refazer o que era vivo.
mas o agora
não aceita reencenação.
o agora de antes
já é memória.
o agora de agora
é outro bicho,
outra respiração.

digito, apago.
uma frase tenta voltar,
mas veio manca.
a ideia que resgato
não tem mais casa.

claro.
era sobre o agora.
e o agora…
já foi.

TUDO SE GUARDA

 𝘵𝘶𝘥𝘰 𝘴𝘦 𝘨𝘶𝘢𝘳𝘥𝘢

acaba sendo meio impossível
não dar aquela abraçada gostosa
na memória morna do que foi.
não é saudade que rasga,
é daquelas que sorri sem som
enquanto o dia segue.

às vezes paro e penso
que sinto falta de quase nada,
mas não por frieza —
é só porque sei
que vai estar tudo ali
quando eu voltar.

a cadeira na varanda,
o portão com um trinco difícil,
a risada atravessando a cozinha,
a xícara lascada no canto do armário,
e até o silêncio de quem já entendeu tudo
sem dizer uma palavra.

e é por isso que sigo.
porque não preciso segurar com força
o que não escapa.
tem coisa que não se perde,
mesmo com o tempo,
mesmo com o mundo rodando.

tem coisa que se guarda sozinha.

QUANDO TUDO AFASTA

 

quando tudo afasta

não é a ausência que leva embora,
é a clareza que chega com o tempo quieto.

quando os dias se alongam
e ninguém chama,
quando a agenda se esvazia
e ninguém aparece,
algo se ajeita por dentro.

não some,
só muda de tom.
e aquilo que parecia distante
cresce em nitidez,
feito estrela que só se nota
quando a cidade dorme.

não é o sumiço que apaga,
é o silêncio que traduz.

e aí percebo:
algumas ligações não quebram,
só se reinventam no eco.
ficam em mim
feito mapa que só se lê
quando o mundo desacelera.

talvez eu tenha sido parte de algo maior
do que imaginei,
e só percebi
agora —
com tudo em pausa,
e o coração
acordado.

QUANDO TUDO AFASTA - Narrativa Poética

 Quando tudo afasta - (Narrativa Poética) 

No começo achei que estava perdendo.
As mensagens rarearam,
os convites cessaram,
as rotinas se fecharam sem mim.
Senti o chão recuar
como se alguém tivesse puxado o tapete
enquanto eu ainda falava.

Mas aos poucos,
os dias esticaram sem ruído.
O telefone permaneceu mudo,
as horas se tornaram vastas
e eu me vi no centro de um espaço
antes coberto de vozes.

E então veio a clareza.
Não do tipo que grita ou ilumina.
Veio sutil, como um lençol de bruma
levantando aos poucos da paisagem.
De repente, vi nitidamente
o que antes era confusão.

Não era o afastamento que doía,
era o que ele revelava.
Porque a distância não leva embora.
Ela mostra.
Ela tira o excesso,
e o que fica… é verdade.

O que parecia longe ganhou contorno.
Como uma estrela que só brilha
quando a cidade apaga os barulhos,
quando a gente enfim olha pro alto.

Com o silêncio,
vieram outras compreensões.
Laços não quebram — não os reais.
Eles apenas mudam de voz.
Saem do grito, entram no sopro.
E às vezes ecoam mais no vazio
do que quando estavam por perto.

Eu percebi.
Sem ter pra onde correr,
sem agenda cheia pra disfarçar.
Percebi que fui parte de algo bonito.
Talvez maior do que pude notar na pressa.
E só agora,
com tudo em suspensão,
meu coração entendeu.

Ele não estava sozinho.
Só estava… acordando.